Rogério Silvério de Farias retorna aos Descaminhos Sombrios com uma tradução fascinante. Os desconhecidos caminhos do mar, das criaturas há muito esquecidas surgem das escritas densas e, no caso, envoltas em fantasia, neste magnifico conto de H. P. Lovecraft.
O PESCADOR DO CABO DO FALCÃO
Conto de H. P. Lovecraft e August Derleth
Tradução de Rogério Silvério de Farias
Pela costa de Massachusetts se murmuram muitas coisas sobre Enoch Conger. Algumas delas só se comentam em voz muito baixa e com muita cautela. Tão estranhos rumores circulam ao longo de toda a costa, espalhados por pescadores do porto de Innsmouth, seus vizinhos, já que ele vivia a umas poucas milhas ao sul, no Cabo do Falcão. Esse nome se deve ao fato de que ali, em épocas migratórias, são vistos falcões peregrinos, gaviões e também outras aves de rapina naquele estreito pedaço de terra que entra no mar. Ali vivia Enoch Conger, até que ninguém mais o viu, contudo ninguém podia afirmar que ele estivesse morto.
Era forte, de peito e ombros largos, com longos e musculosos braços. Apesar de não ser um homem velho, tinha barba, e sua cabeça era coroada por uma longa cabeleira. Seus olhos azuis se afundavam num rosto quadrado. Quando levava sua capa de pescador, com o chapéu sobre a cabeça, parecia um marinheiro desembarcado de um velho navio de séculos atrás. Era um homem taciturno. Vivia sozinho na casa de pedra e madeira que ele mesmo havia construído, de onde podia sentir o vento soprar e ouvir o som das gaivotas, das andorinhas, do ar e do mar, e de onde podia admirar o voo das grandes aves migratórias em suas viagens até terras distantes. Diziam que ele as entendia e que falava com as gaivotas e as andorinhas, com o vento e com o ruidoso mar, e ainda com outros seres invisíveis que, dizem, emitiam uns tons estranhos, algo parecido com os calmos sons de certas bestas batráquias, desconhecidas dos pântanos e lodaçais da terra.
Conger vivia da pesca, que apesar de escassa, lhe era suficiente. De dia e de noite lançava suas redes ao mar; o que pescava ele levava a Innsmouth, Kingsport ou mais além, para vender. Porém uma noite o viram chegar sozinho a Innsmouth; não trazia nenhum peixe e permanecia com os olhos muito abertos, atônitos, como se tivesse olhado por muito tempo o pôr do sol e tivesse ficado cego. Nos arredores da cidade, entrou numa taberna em que costumava ir, se sentou numa cadeira, sozinho, e se pôs a tomar uma cerveja. Alguns curiosos que estavam acostumados a vê-lo, se aproximaram de sua mesa para beber com ele, até que, sob os efeitos do álcool, começou a balbuciar. Porém falava como se o fizesse para si mesmo, e seus olhos não pareciam ver nada.
Dizia que havia visto algo maravilhoso naquela noite. Havia levado seu barco até o Recife do Diabo, situado a mais de uma milha de Innsmouth, e ali havia estendido sua rede. Sim, havia conseguido muitos peixes; porém em sua rede havia algo mais; algo que era uma mulher e que, ao mesmo tempo, não era; algo que lhe falava como um ser humano, porém com o tom gutural de uma rã e com o acompanhamento de uma música aflautada como a que nos meses de primavera, se escuta nos pântanos; algo que tinha um talho, profundo e extenso, no lugar de uma boca, porém uma ínfima doçura em seus olhos; algo que levava debaixo dos cabelos que caiam sobre sua cabeça o que pareciam ser fendas branquiais; algo que lhe suplicava para que lhe deixasse voltar às profundezas do mar; algo que lhe prometeu, em troca, sua própria vida se alguma vez necessitasse.
─ Uma sereia! ─ disse alguém, com uma risada.
─ Não era uma sereia ─ disse Enoch Conger ─, pois tinha pernas, porém os dedos de seus pés eram como os dos palmípedes, e tinha mãos, porém os dedos de suas mãos eram como os dedos de seus pés, e a pele de seu rosto era como a minha, porém seu corpo tinha a cor do mar.
Riram dele, porém ele não ligou. Somente um deles não riu, porque havia ouvido os velhos homens e mulheres de Innsmouth contar umas histórias muito estranhas, que remontam aos tempos dos navios antigos e do comércio com as índias Orientais. Segundo esses anciões, naqueles tempos haviam celebrados alguns casamentos entre homens de Innsmouth e mulheres das ilhas do Pacífico Sul; falavam de estranhos acontecimentos ocorridos no mar, perto de Innsmouth. Esse homem não riu, simplesmente escutou calado e logo se foi, sem se juntar com as piadas e risos de seus companheiros. Porém Enoch conger não reparou nele, tampouco se deu conta das risadas que havia provocado. Continuou seu relato; explicou como havia retirado a criatura das redes em seus braços, descrevendo a sensação que lhe havia produzido o contato com a sua pele fria e a textura de seu corpo; contou como a havia soltado, como a viu nadar e submergir-se entre as rochas do Recife do Diabo, como a viu aparecer de novo, levantando seus braços uma última vez num aceno, e desaparecendo para sempre.
Depois daquela noite, Enoch Conger voltou poucas vezes à taverna. Quando vinha, sentava-se sozinho e não respondia a quantos lhe perguntassem por sua “sereia”, querendo saber se ele havia feito alguma proposta antes de deixá-la livre. Voltou a mostrar-se taciturno, falava pouco, bebia sua cerveja e se ia. A única coisa que se sabia era que já não pescava perto do Recife do Diabo, que lançava suas redes em algum outro lugar próximo ao Cabo do Falcão. Embora se falasse que ele tinha voltado a ver aquela coisa estranha que havia pescado aquela noite em suas redes, Conger era visto com freqüência na ponta do estreito pedaço de terra que avançava mar adentro, olhando as águas como se esperasse ver surgir uma embarcação no horizonte ou a manhã que que sempre ronda e nunca chega para os buscadores do futuro e outros homens, fosse o que fosse o que esperavam e pediam à vida.
Enoch Conder foi se tornando cada vez mais introvertido, e ele, que havia sido um assíduo cliente da taberna de Innsmouth, acabou por não aparecer mais ali. Limitava-se a trazer o pescado ao mercado e voltava apressadamente à sua casa com as provisões que necessitava. Entretanto, a história de sua sereia se espalhou ao longo de toda a costa e terra adentro até Arkhan e Dunwich, pelo Miskatonic, e também mais além, nas negras e compactas colinas onde viviam pessoas mais inclinadas a levar na brincadeira essas coisas.
Passou um ano, e outro, e uma noite chegou a notícia de que Enoch Conger havia sido gravemente ferido durante uma de suas solitárias pescarias. Dois pescadores o haviam visto ao passarem perto de seu barco e lhe haviam prestado socorro. Como sua casa do Cabo do Falcão era o único lugar aonde queria ir, o levaram até lá, antes de irem rapidamente buscar o doutor Gilman de Innsmouth. Quando voltaram à casa de Enoch Conger, acompanhados do médico, o velho pescador havia desaparecido.
O doutor Gilman se absteve de dar sua opinião, porém os dois pescadores que o haviam trazido murmuraram e contaram a quem quisesse ouvir o singular relato. Falaram de uma grande umidade que reinava na casa, das inumeráveis gotas de água que escorriam pelas paredes, que pendiam da maçaneta da porta e que encharcavam a cama onde haviam deixado Enoch Conger, antes de saírem em busca do doutor. Falaram das pegadas molhadas deixadas no solo por uns pés palmípedes. Aquelas pegadas eram muito fundas ao longo de todo o caminho, desde a casa até o mar, como seu um grande peso, tão grande como o de Enoch Conger, e pensaram que talvez ele houvesse sido levado pelos donos desses pés, que foram obrigados a afundar no solo a cada passo, até deixar a nítida marca de sua passagem.
Rapidamente todos se inteiraram do que havia acontecido. Porém algumas pessoas se riam dos pescadores, pois não havia mais que uma só linha de pegadas, e Enoch conger era um homem muito pesado para que alguém pudesse carregar com toda pressa. O doutor Gilman não havia feito o menor comentário, exceto que havia visto pés palmípedes em alguns habitantes de Innsmouth, porém que os dedos de Enocch Conger, que havia examinado em certa ocasião, eram normais e não palmípedes. Alguns curiosos foram até a casa do cabo do falcão para ver se podiam descobrir algo novo. Porém voltaram desiludidos. Não viram nada, e se juntaram aos que se riam dos dois infelizes pescadores. Ao cabo de algum tempo, aqueles dois pobres homens foram reduzidos ao silêncio, e não faltou quem deixasse cair a suspeita de que havia sido eles os responsáveis pelo sumiço de Enoch Conger, inventando aquela história para encobrir seus atos. Esse rumor se estendeu também a outros lugarejos.
Para onde quer que tivesse ido, Enoch Conger não voltou a sua casa no Cabo do Falcão. O vento e o tempo a destruíram: arrancaram uma tábua aqui e outra ali, desgastaram os ladrinhos da chaminé, romperam as janelas e afundaram o telhado. As gaivotas, as andorinhas e os falcões que sobrevoavam a casa, não voltaram mais a serem vistas e ouvidas. Pouco a pouco, ao longo da costa, os rumores que circulavam em torno do assassinato se aplacaram, se descartando qualquer possibilidade de homicídio, porém surgiram certos sinais escuros que induziam a pensar em algum fenômeno muito mais aterrador e inexplicável.
Um dia em que o venerável Jedediah Harper, patriarca dos pescadores da costa, desceu à terra com seus homens, jurou haver visto perto do Recife do Diabo um estranho grupo de criaturas que nadavam. Tais seres, segundo dizia, não eram humanos por completo, nem batráquios tampouco; eram criaturas anfíbias que cruzavam pela água, metade humanas e metade rãs; formavam um grupo de mais de quarenta , e eram machos e fêmeas. Haviam passado perto de seu barco, e brilhavam a luz da lua, como uns seres espectrais surgidos das profundezas do atlântico. Pareciam estar cantando a Dagon um canto de louvor. E entre eles, formando parte do mesmo grupo, havia visto Enoch Conger, nadando com os demais, desnudo como eles, e unindo sua voz à deles no cântico de louvor. Atônito, ele tinha chamado Enoch que tinha se voltado para ele, de modo que vira seu rosto. Logo, como Enoch Conger, todos submergiram debaixo das ondas e ele não voltou a vê-los mais.
Dizem que, depois de ter falado tanto, o velho homem foi silenciado pelos membros dos clãs Marsh e Martin, que, segundo se dizia, estavam relacionados com alguns habitantes do mar. O barco de Harper não voltou a sair ao mar, o velho não tinha mais como ganhar a vida, nem ele e nem os homens que haviam formado sua tripulação.
Demorou muito tempo até que, um dia, um jovem, que havia passado sua infância em Innsmouth e se lembrava de Enoch Conger, regressou ao porto dessa cidade e contou como ele, em companhia de seu filho pequeno, havia saído a remar a luz do luar. Já haviam passado o Cabo do Falcão quando, de repente, bem atrás de seu barco, e tão perto que podiam tocar com o remo, surgiu o torso desnudo de um homem entre as ondas. Mantinha-se na água tal como se outros, a quem não podiam ver, estivessem o suspendendo por baixo. O rosto de Enoch Conger se voltava até o Cabo do Falcão e parecia olhar com saudade a casa que continuava ali, em ruínas. A água pingava de seus longos cabelos, de sua barba, e escorria sobre seu corpo escuro; sua pele debaixo das orelhas tinha algo como duas grandes guelras. E logo, tão estranha e repentinamente como havia surgido, desapareceu, submergindo no mar.
Ao longo da costa de Massachusetts, perto de Innsmouth, se contam muitas coisas a respeito de Enoch Conger, e outras se contam em voz baixa...
FIM
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