Sete Maria tinha a vila dos meninos
Sete Maria dentro do sertão
Sete destino diferente, sete sina
(...)
Das Graças encantada, moça feiticeira
Virou coruja e mora num grotão.
Sete Marias - Sá e Guarabyra
Encantada
Tânia Souza
Vila dos Meninos quase não tem meninos. Meus olhos
percorrem as casas e sei que a paz dorme com eles. Ali, no casebre aconchegante,
o avô insone relembra o passado, lá, no banco da praça, a moça espera o
namorado. No escuro do quarto, a mãe cansada da lida sonha, enquanto o
recém-nascido dorme.
Durante
o dia, o sol queima a moleira das gentes, e quando noite cobre sertão, os uivos
dos bichos seriam até bonitos de se ouvir... Não fossem cravejados do cheiro da
morte empestando até as estrelas.
Tempo
foi que não era assim. Mas tempo conta histórias que nem sempre são reais.
Tempo doura as tristezas, porque fardo ardido por demais, alma não aguenta. E
assim, nascem as lendas.
Contam que quando mainha partiu, o dia amanheceu feito hoje, ainda não queimando de luz os olhos da gente, e os calanguinhos corriam pra debaixo das pedras. Era noite quando o Pai mandou que Maria do Rosário juntasse as meninas e fosse pra fora. Lá dentro, mãe gritava tanto que nem dava pra contar. Depois, foi chorinho ardido de criança nova. Boca não falou palavra, mas todos pensavam o mesmo: quem dera dessa feita fosse menino.
Mas era não. Era mais uma Maria que nascia. A sétima. E na terra quebrada do sertão, nossa história - mais triste que fosse inventada - tava longe de findar. Ganhava era tinta vermelha que esse chão não cansa de beber.
Contam que quando mainha partiu, o dia amanheceu feito hoje, ainda não queimando de luz os olhos da gente, e os calanguinhos corriam pra debaixo das pedras. Era noite quando o Pai mandou que Maria do Rosário juntasse as meninas e fosse pra fora. Lá dentro, mãe gritava tanto que nem dava pra contar. Depois, foi chorinho ardido de criança nova. Boca não falou palavra, mas todos pensavam o mesmo: quem dera dessa feita fosse menino.
Mas era não. Era mais uma Maria que nascia. A sétima. E na terra quebrada do sertão, nossa história - mais triste que fosse inventada - tava longe de findar. Ganhava era tinta vermelha que esse chão não cansa de beber.
Não é lida fácil ser mulher, no sertão, menos ainda. E quando se traz a sina de ter matado mãe? Pai não queria, mas a parteira insistiu que eu fosse Das Graças. Das Dores já tinha uma na família, que fosse das Graças, então, para compensar a dor que causei.
Vila dos Meninos havia sido boa pra nossa gente. Mas cobrava preço alto. Tempo corria e hora que o mal chegava, era de sangue a paga. Uma maldição de tempos mais velhos que as pedras surgia. Os antigos contavam e os mais novos, mangavam. Muito tempo se passara desde que o mal viera por derradeira vez e o último avô já nem se lembrava.
Mas uma noite, elas voltaram. Quando as asas da morte chegaram, eu tinha sete anos.
Sempre sete.
O vento anunciava a tempestade e o povo sorria com cheiro da chuva que se avizinhava. Mas era outro vento, esse.
Um vento que vem zunindo, levantando as poeiras guardadas da terra e cobrando a sede que o chão gemia, dia a dia. Naquela noite, não vi estrelas, nem dormi. Lá fora, asas da morte tampavam a lua de espanto e os gritos anunciavam desgraça. Passou rente a morte no nosso telhado. Só quando sol nasceu, a certeza de mais um ano de paz era feita. Mas nalgum lugar, era choro e lamento.
E Vila dos Meninos foi ficando sem meninos. A sombra que cobria o luar tinha cada vez mais sede e vez ou outra, rasgava o costume, levando um guri que artioso ousava sozinho no entardecer.
Nas meninas, não bulia. Isso era o que eu pensava. Tempo passou, passou e passou... e vida era pedra ardendo no meu peito de menina. Cedo acostumei com desdita de pai não gostar de me olhar. Era das graças de minha mãe que ele chorava e lamentava ver em mim.
As irmãs se foram pelo mundo. Eu fiquei. De mim, diziam no povo que variava. A cada ano, a cidade mais triste, a morte bafejava o ar e levava o que mais de precioso: os filhos da terra.
Houve caçada, os homens seguiam pistas por noites, mas do mal alado, não havia rastro algum. Mas estavam lá e eu sentia. A cada noite que o luar me chamava, eu sentia a presença das sombras. Até nos meus sonhos, eu sentia.
Pois, coisas que não se viam existiam e eu bem sabia. Eram miudezas que os olhos nenhum viam. Sonhava com estrelas e noites onde se moviam criaturas minúsculas, famintas de risos e vida. E vezes que acordava longe, perdida de tanto vagar nas imagens que os sonhos traziam, eu sabia que não fora apenas sonho.
Eu sabia da voz que
embalava meus sonhos em tristezas a cada ano.
E até que chegou o
tempo que me fiz moça. Bonita, mas estranha. Encantada, sussurravam uns,
maldição de pai, contavam outros. E eu apenas seguia meu caminho numa terra
marcada pela dor. Sofria de doença de andar enquanto dormia. Mas eu
sabia que não andava só.
Até que uma noite, as estrelas chamaram e não me neguei... já no escuro uma faísca buliu o ar, me chamando sempre. Não tive medo.
Quase dia,
a caverna.
Achei
ouro e pedra de valia grande no mais profundo grotão. E nas paredes, uma
história que não deve nunca de ser contada. Nos bolsos e onde pude, levei para
a vila as preciosidades da terra. O povo sorriu a fartura da sorte e grande
festa seria armada. Mas eu não esquecia os traços em sangue na pedra.
Ainda naquela noite, elas voltaram. E descobri que minha sina de Maria, a sétima irmã em uma terra maldita não teria outra trilha.
Ainda naquela noite, elas voltaram. E descobri que minha sina de Maria, a sétima irmã em uma terra maldita não teria outra trilha.
As chamas da fogueira não impediram que as asas me levassem para longe. O medo ferrou a alma daquela gente, mas com a paz dos dias vindouros, a história ganhou outras cores.
No silêncio daquelas paredes onde, quando vi por vez primeira os riscos na pedra, eu soube da minha sina de Maria. Maria fada, Maria mágica, Maria Bruxa... Maria das Graças.
Era minha a missão de guardar a terra. Encantada, virou coruja e mora num grotão, diziam, quando fiz morada no grotão sombrio. Maldita, eu sempre soube, e as sombras que voam ao anoitecer em busca de sangue, somente meus olhos podem velar.
Não, em Vila dos Meninos quase não tem mais menino. Cuidei que não fosse assim, mas a fome e a sede delas é mais forte que minha magia e aos poucos, elas conseguem fugir... Os dias vão passando, e a luz dos meus olhos vacilam.
Entanto,
n’alguma casinha humilde, nasceu outra Maria, sétima filha que, das coisas que
todos podem ver, ela vê muito mais.
E todas
as noites, ensino a ela, em sonhos, a sina de ser sétima Maria.
Belíssimo texto, narrativa deliciosa!
ResponderExcluirQuem sabe sabe, né? rs
Obrigada Alfer, tentando pegar o "jeito"!
ResponderExcluirBravo!
ResponderExcluirAlfer tem toda razão. Um texto encantador...
E lembrou-me a minha família. Nela há sete Marias, minhas irmãs.
Um beijão
Von Sorian
Sempre que leio teus textos me encanto!
ResponderExcluirAbraço!