Dedicado aos que partiram, entanto seguem conosco
nas lembranças mais ternas
Ah, o amor, este sentimento tão cantado por poetas, sonho de noites solitárias e ilusão que acalenta vidas. Por amor, tantas espadas cantaram e o sangue se derramou; a vida se renova, as esperanças se tornam infindas. Por amor, a vida triunfa e a morte se concretiza. E por amor, a saga da humanidade se desenha em sonhos, tragédias e melodias. Mas esta não é apenas mais uma história de amor. As desventuras de Anya, A bela e Ulrti, O Valente, foram contadas por décadas no repouso das casas, à luz das fogueiras e nas longas noites dos viajantes. Duas criaturas condenadas ao mais profundo amor, duas crianças sonhadoras que vivenciaram um sentimento tão intenso e por ele, desafiaram os deuses por um amor que marcou a natureza, moldando os elementos com a sua intensidade, atravessando eras e espalhando pelo mundo a força desse sentimento.
Por muitos anos, se algum viajante se aventurasse pela paisagem absurdamente montanhosa a Oeste de Alfrumtt, poderia ainda encontrá-la. Cravada entre as sombras gigantescas e seculares, via-se uma cabana quase oculta entre as rochas monumentais. Naquele cantinho escondido, as Donzelas Sonhadoras viveram por longo tempo. Diferente das outras mulheres, isoladas, porém respeitadas, essas criaturas místicas dançavam em noites mágicas, com cânticos inebriantes e uma profunda ligação com os elementos, eram guias, detentoras de um conhecimento mais antigo que poderiam recordar-se. Rainhas de luz, nasciam predestinas e nas montanhas, encontravam o seu destino. Dos mais simples moradores das vilas a reis e príncipes, a todos elas atendiam. Entanto, a paisagem já não era a mesma, cinzenta e desolada, cercada por árvores mortas, revelavam a passagem de um tenebroso inverno.
Os murmúrios das noites mais escuras contavam que, quando o frio chegava, uma neblina a circundava e um véu parecia descer sobre a paisagem; nestas horas, até os corações mais endurecidos se comoviam com a tristeza do lugar, pois fora ali, nas elevadas esculturas rochosas que, num inverno triste e melancólico os dias choraram como há muito os homens já não viam. O vento era então um lamento contínuo, que adoecia os solitários e cobria os viajantes com a insanidade.
Outrora não fora assim, quem por ali passasse, veria a cabana perdida entre a natureza como um recanto de paz. Uma última caminhante dos sonhos vivera ali. Da chaminé, um fiapinho esfumaçado denunciaria a madeira queimando resoluta, contando sobre brasas e faíscas que estralavam na lareira rústica e acolhedora. Os olhos que perscrutassem a paisagem poderiam então perder-se na imensidão de cumes e árvores tão antigas quanto o tempo, trazendo resquícios de épocas inomináveis. Anya dos cabelos dourados, que com os passos de sua dança curava os enfermos e com longos braços os acalentava, ao sabor de ervas coloridos e nas horas dilacerantes, dedilhava no alaúde acordes suaves que guiavam os últimos passos dos que deixavam esse mundo de ilusões. Anya, A Bela. Desde que a última moradora partira para o mundo dos sonhos reais, a moça acostumara-se a viver só, vislumbrando nas águas claras do lago um rosto desconhecido que lhe traria enfim a alegria.
O cavaleiro estivera viajando por muito tempo, o coração ferido por guerras e batalhas ferozes, buscava apenas paz e o silêncio. Naquele mesmo verão, ela caminhava sobre a montanha, rainha da imensidão sob um sol que a aquecia por dentro. A roupa cheirava a sol e sinfonias de flautas estavam por todos os lados. Não foi preciso mais que um olhar. O cavaleiro veio ter com ela e não mais partiu. Havia encontrado enfim o pouso que buscara. Desde então, suas figuras recortadas na montanha mais alta encontravam-se ao acalanto de sons multicoloridos e os unicórnios ainda brincavam nos prados ocultos. Ela lhe ensinara a magia, a música e deixara-o sonhar em ter de volta a fantasia. Ele cujos olhos conheceram sua alma, que fora sempre honra e coragem. Ele que sabia sorrir dos seus medos e brincar de sonhos. Ela que conhecia a terra, o segredo das plantas, que ouvia os lamentos do vento nas escarpas e predizia os dias olhando para o céu e fora sempre sensibilidade. Foi assim quando Ulrti Normand, ou apenas, Ulrti, O Valente, chegara e a solidão fora condenada a partir.
Ela. Ele. Por eles, aquele prosseguia sendo um recanto de paz. Nesta pequena e aconchegante moradia, o frio não entrava, pois em nome do amor, duas almas construíram ali o seu refúgio. Quando cruzavam aquelas terras, expedicionários mais atentos juravam ouvir na brisa que tremulava as folhas mais verdes, o som de risos e levavam consigo a força daquele sentimento.
Entanto, é tão breve o tempo quando se ama e tão infinita a dor de um amor que se vai. Aos amantes, os instantes findavam-se como a neve que se derretia suavemente ao sol que surge tímido. O inverno. O frio. À carícia da brisa gélida na face corada, crianças loucas de amor sorrindo ao beijo gélido. Mas este mesmo frio congela a alma, fere a pele e queima mais que o fogo. Às Donzelas Sonhadoras não era permitido amar, seu amor deveria ser a todos e não queimar-se como uma chama única. Anya sabia, mas ousara mais e, por todos os elementos, tentara esconder esse amor. Entretanto, os deuses souberam e seu destino fora selado.
A febre chegou tão repentina quanto ele chegara a sua vida. Uma noite, quando sorriam vendo nas chamas auspícios de um futuro de luz, os olhos dele tornaram-se febris como nas mais sangrentas batalhas e sua voz trouxe tanta tristeza que lhe dilacerou a alma:
— Estou morrendo, amada minha... — A voz tornara-se apenas um sussurro — Os mortos pedem pela canção...
Enlouquecida pelo temor, ela negou, beijando o ser que tanto amara. Quando os lábios se tocaram suavemente, ele murmurou ainda: — Somente do sopro de seus lábios minha vida se renova e esqueço que devo partir. — As lágrimas de Anya percorreram a pele em fogo e a magia do amor fizera sua parte, mas seria tão breve a cura.
O inverno fora rigoroso. No frio intenso, apenas um viajante tomaria o caminho das montanhas. Anya já o esperava. Os sinais foram chegando aos poucos, alguns eram claros e assombrosos, outros, imperceptíveis, como se fosse apenas um sonho. Ela soube que ele viria e desde então, teimava em não esperá-lo, debalde seus olhos seguissem enterrados na trilha sinuosa da paisagem, temendo a vinda do Cavaleiro da Noite.
Era comum vislumbrá-la espiando a noite, temendo a escuridão e estremecendo aos ruídos desconhecidos. O silêncio do medo tomava o coração miúdo, mas para ele, ela sempre seria luz, riso e paz.
Quando a febre voltou, ela velou por ele, noite após noite, enquanto sonhava com o tropel de um cavalo gigantesco, sua respiração violenta rondando a cabana e por muitas noites despertava, zelando por seu amor, afastando as sombras e esquecendo para sempre o alaúde como um sonho distante.
Certa feita, ao entardecer gélido, quando o frio envolvia a tudo e o vento sussurrava entre os galhos, um ruído interrompeu a paz das escarpas e, no ponto mais alto, na montanha mais alta, onde estivera colhendo ervas, Anya ergueu-se. O vestido branco perdendo-se entre as pernas enquanto ela se enrolava na manta quadriculada. O xale azul adornava os cabelos dourados, os cachos brincando ainda no vento. O som rítmico tornava-se mais forte e os galopes constantes se sucediam na noite escura. Aflita, ela tocou o peito e tentou conter-se, também o coração dela galopava ameaçando deixá-la. Finalmente surgia na trilha distante a figura esperada. Com ele, a noite caiu sobre os cumes.
O cavaleiro solitário trazia sobre si o manto do luar argênteo, asas de mil pássaros pareciam-no envolver e cada vez mais, ele se aproximava. Nada havia na densidade da noite além dos galopes. O frio se intensificara, mas a neblina costumeira não surgira. O silêncio foi tão grande que calou o vento, deixando apenas o luar ardendo. Quando a dor queimou-lhe de tal forma o peito, as cores afastaram-se envergonhadas ao seu olhar, Anya tentou desesperadamente lembrar-se da cor do sol, dos tons de um verão que jamais voltaria. Junto a um aroma desconhecido, as delicadas memórias foram tecendo um quadro dourado. Aquecida por esses sentimentos, retornou ao leito de seu amor.
O cavaleiro solitário trazia sobre si o manto do luar argênteo, asas de mil pássaros pareciam-no envolver e cada vez mais, ele se aproximava. Nada havia na densidade da noite além dos galopes. O frio se intensificara, mas a neblina costumeira não surgira. O silêncio foi tão grande que calou o vento, deixando apenas o luar ardendo. Quando a dor queimou-lhe de tal forma o peito, as cores afastaram-se envergonhadas ao seu olhar, Anya tentou desesperadamente lembrar-se da cor do sol, dos tons de um verão que jamais voltaria. Junto a um aroma desconhecido, as delicadas memórias foram tecendo um quadro dourado. Aquecida por esses sentimentos, retornou ao leito de seu amor.
Ele tremia. Quando as mãos suaves tocaram-lhe a face suave, os olhos arderam e em delírios pediu-lhe ainda um beijo. No ultimo beijo de amor, as cenas de um amor intenso os envolveram. Mas desta vez, as lágrimas de Anya não traziam de volta a cor a face de Ulrti, que sussurrou ainda: — Os mortos voltaram, eles me guiarão... a música Anya, toque seu alaúde amor meu....
Após essas palavras, o silêncio mais uma vez sobreveio e, de volta ao frio agreste, à solidão das montanhas e aos galopes desvairados, a febre calou a música e quando ele enfim adormeceu tomado pelas chamas ocultas, todas as cores se perderam. Anya não tinha mais consciência do seu choro, as lágrimas surgiam entre os cílios e logo se perdiam na face pálida, abriam sulcos eternos quando deslizavam o rosto e entranhava-se na epiderme frágil. Lá fora, o mundo estaria absolutamente cinza não fosse o luar. Foi quando o Cavaleiro da Noite chegou.
A trilha fora vencida e o cavalo ofegante parou a frente da cabana. Ela não queria vê-lo, mas havia ainda uma chance. Os olhos do cavaleiro devassaram a alma de Anya, mas não eram frios, os olhos de abismo, surdos, cegos e mudos estavam presos a uma saga única. Quando ela estendeu-lhe as mãos pálidas, ele recusou a mão que lhe era ofertada. O Cavaleiro da Noite não viera por ela e sim para levá-lo definitivamente.
Quando ele partiu levando-o consigo, o vento arrastou consigo o xale azul de Anya e o perdeu na noite umbrosa. Foi assim que seu mundo tornou-se absolutamente cinza, pois na dor maldisse os deuses, renegando da vida que lhe fora ofertada, tendo o cavaleiro negado seu pedido para levá-la, entregou-se ao nada, renegou seu dom e quebrou o alaúde. E por muitos e muitos anos, ela ficaria só nas montanhas desoladas. O frio que outrora a circundava, tornara-se toda ela. Ela, que era ausência e acúmulo de todas as cores, tal qual espectro errante vagava, os olhos sempre fixos nas trilhas por onde ele viera levar-lhe o sol. Piedosamente, o luar a circundava quando, em noites de febre e delírio, clamava entre os montes pela volta definitiva do Cavaleiro da Noite.
A trilha permanecia à espera do galope sombrio. E ela esperou por ele, pois não lhe importava que chegasse o tempo que as eras do homem terminassem, que as palavras já estivessem todas ditas, ela esperou por ele quando o frio da noite queimou-lhe pele, quando o sol derreteu a neve e o vento embaraçou-lhe os cachos dourados que ele tanto amara. Não lhe importava o tempo que levasse pedacinhos da alma em pranto até que se tornasse somente sombra oculta entre as brumas, cercada por um amor maior e mais profundo que a vida, um amor além da morte. Mas por negar o seu dom, a morte lhe fora negada.
Contam os moradores de Alfrumtt que jamais o cavaleiro voltou e Anya tornara-se simplesmente sombra, um espectro errante das montanhas. Outros dizem que os deuses tiveram piedade e numa noite de frio, o Cavaleiro da Noite voltou para levá-la. Ele não viera só, com ele, sobre um reluzente alazão, o seu amado estendia-lhe as mãos e ela enfim teve paz.
Mas toda a sua dor ficou nas montanhas e lá, tomou forma. E ainda hoje, nos resquícios do universo, um espectro circunda as montanhas, lá, onde Anya tornou-se a Rainha das Sombras e colheu tantas mágoas que seu lamento se estendeu ao infinito, rompendo a imensidão das eras, dando voz a todos os que já conheceram a dor, tornando-se o eco de todas as mágoas do universo.
Nos arredores dos mais agrestes penhascos, o vento vibra e seus acordes soam violentamente no peito dos incautos como um alaúde maldito. Os mais ousados, os sonhadores e os que sofrem por amores feridos, pedem por sorte e ofertam às montanhas longas fitas azuis, que espalham-se ao vento em prece para que Anya, a Rainha das Sombras, encontre finalmente o seu sol.
Nossa... incrivel!
ResponderExcluirparabéns Tania =)
que história arrepiante, muito linda, bem contada, como todo o misterio nas linhas.
ResponderExcluirMuito bonito, parabéns!
ResponderExcluirGracias muchachas, obrigada pela visita!
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