Chamo-me Victoria Birth Hatherly e meu pai acaba de ser enforcado, após três meses de reclusão e um julgamento tumultuoso.
Ontem à noite, os verdugos permitiram-me, finalmente, visitar o meu pai. Ele estava bem mais sereno do que eu podia esperar. Deu-me um beijo de despedida e depositou em minha mão uma longa carta. Disse-me que não dispunha de tempo suficiente para fazer, pessoalmente, as incríveis revelações que, ao longo de dois dias, freneticamente entornara na missiva. Pediu-me, apenas, que lesse a carta com a maior urgência possível, porque eu estava circunscrita por um grande e iminente perigo.
Eu sabia, sim, que o perigo me rondava. Desde muito pequena, recebo, diariamente, uma injeção que incide diretamente no músculo cardíaco. A aplicação é demorada e dolorosa. Parece-me que o êmbolo da seringa pressiona contra o meu peito não um líquido salvador, mas lavas incandescentes. Nutro uma dependência absoluta pela droga milagrosa. A abstinência de apenas um dia significa uma viagem sem retorno ao Vale das Sombras. Mas as ampolas acabaram. Elma, minha doce dama de companhia, ministrou-me, no limiar da madrugada, a última dose da substância que me mantém viva. E, até ler a carta, eu não sabia como obtê-la novamente. Nunca soube a natureza de minha enfermidade, nem como o meu pai conseguia o único remédio capaz de neutralizá-la. Mas, agora que sei, ainda mais inexoráveis e próximos se me anunciam o grotesco definhamento e o doloroso fim.
As circunstâncias nas quais o meu pai foi preso e condenado estão minuciosamente descritas na missiva. Porém, como o tempo urge, transcreverei, apenas, as passagens mais relevantes. Espero que as omissões não comprometam a cognição dos acontecimentos que induziram meu pai ao cadafalso. E que, é bem provável, concorreram para determinar, ao que tudo indica, o meu precoce perecimento.
"Filhinha, querida – assim o meu pai inicia a sua carta. – É preciso que você leia esta missiva com redobrada atenção, se pretende sobreviver.
Você está inteiramente a par da série de crimes que, há quase duas dezenas de anos, vem, com incrível regularidade, mergulhando o nosso país num clima de horror e expectativas. Crimes abjetos e recorrentes, que vitimam quase sempre indigentes, bêbados e prostitutas.
Sabe, também, que sou eu o acusado de provocar, a cada seis meses, as terríveis mutilações na face de cada uma dessas pobres pessoas de baixa estirpe, embora as provas dos autos apontem justamente em sentido contrário.
Com efeito, nenhuma das pessoas que teve o olho esquerdo cirurgicamente removido me reconheceu como o causador de seu infortúnio. Ao contrário, todos os depoimentos convergem para a evidência de que outra pessoa, com características físicas e morais absolutamente distintas da minha – no caso, um simples e rude cocheiro -, acercava-se da vítima com promessas encantadoras e a conduzia às tabernas de reputação mais duvidosa, onde lhe eram ofertadas, gratuitamente, bebidas a rodo e ilimitadamente. Ao generoso pretexto de levá-la para casa - já que, a esta altura, a infeliz presa estava completamente embriagada -, o cocheiro oferecia-lhe transporte de cortesia. E, tão logo subia a vítima ao coche, o verdugo, violentamente, administrava-lhe clorofórmio, de molde que o desfalecimento era imediato. Quando retornava a si, o infeliz, abandonado em estrada de periferia, descobria, para o seu horror, que tivera um dos olhos arrancado da órbita.
Você também está ciente de que o juiz Maastricth, que conduziu o processo, é meu inimigo capital, embora eu não possa prová-lo. Ele não me perdoa o fato de não ter podido salvar o seu pequeno e único filho. Como magistrado culto e experiente que é, sabe, plenamente, que a obrigação do médico é de meio e não de fim. Ou seja: o médico não garante a cura do paciente. A sua missão consiste em envidar todos os esforços a seu alcance com vistas ao restabelecimento do doente; ou, em sendo impossível a cura, minorar os efeitos nefandos da enfermidade. Juro que empreguei todos os meus conhecimentos e habilidades para resgatar a vida do pequeno Maastricht. Mas, evidentemente, fracassei.
Todavia, uma única evidência – um indício meramente circunstancial e, com toda certeza, "plantado" pelos meus detratores – foi suficiente para que eu fosse condenado à forca: uma abotoadura, com as minhas iniciais, resultou encontrada no local onde a última das vítimas fora abandonada. De pouco adiantaram os fortes e incontornáveis argumentos de meu advogado. O juiz estava convencido de que o cocheiro não passava de um comparsa, de um agente secundário na perpetração desses hediondos crimes. Intuiu o dr. Maastricht que o cocheiro trabalhava para mim, já que, conforme parecer unânime dos renomados peritos, a remoção dos olhos das vítimas era obra de um cirurgião experiente. Ao argumento de que existiam, somente na cidade de K., pelo menos quinze médicos com as iniciais J. H., o juiz Maastricht redargüiu, como se me lançasse um irônico elogio, que nenhum deles era tão habilidoso e renomado quanto eu. E caso encerrado. Isto mesmo: a minha habilidade e a minha fama me remeteram ao patíbulo. Como o apelo não suspende a execução, e o tribunal não apreciará o recurso em tempo hábil, já sou um homem morto. E nem a comoção popular, animada pela flagrante injustiça da condenação, e insuflada pela violenta reação da imprensa, poderá me servir de tábua de salvação.
Mas, como a morte me prepara o bote fatal e inevitável, devo permitir, querida filha, que você participe da verdade. Dói-me compartilhar com um anjo estes segredos outrora inconfessáveis. Embora a minha condenação tenha sido determinada por injunções meramente pessoais, já que as provas dos autos clamavam por minha absolvição, confesso que as imputações a mim irrogadas eram de todo procedentes. Somente num ponto Maastricht se equivocou: não havia comparsa algum. Havia simples disfarce. Sou, sim, o único responsável pela mutilação dos andrajosos. Mas não me é dado derramar uma lágrima, sequer, de arrependimento. Pois tudo de nefando que perpetrei encontra uma justificativa para além de plausível.
Fui, durante longos anos, adjunto do professor Thelonius Ruiter, certamente o maior fisiologista que a humanidade já conheceu. Com ele, desenvolvi estudos e pesquisas que, se postos em prática, representariam não apenas uma revolução na Medicina, senão um avanço considerável na regeneração de órgãos e tecidos mortos. O mestre Ruiter, laborando com cobaias, conseguiu realmente reverter o processo da morte, algo até então reputado como uma absoluta impossibilidade.
Ruiter descobriu que uma substância produzida pela retina dos mamíferos possuía incríveis poderes regenerativos. Mas a eficácia restauradora da substância estava subordinada à retirada do olho de um animal ainda vivo, da mesma espécie que a do ser regenerado. Verificou, ainda, que o efeito reanimador da substância era fugaz, de apenas poucas horas em animais pequenos e de célere metabolismo. A partir de várias experiências e cálculos probabilísticos, o velho professor chegou à conclusão de que, no homem, o efeito de cada aplicação não ultrapassaria vinte e seis horas, malgrado de um único olho extirpado fosse possível extrair substância suficiente para garantir uma sobrevida de seis meses ao ressuscitado. Ciente de tais restrições, o douto Ruiter, que conseguira trazer à vida seres definitivamente mortos, renunciou à aplicação do "tratamento" em entes humanos.
Herdei de Ruiter o seu laboratório e suas anotações. Mas, em contrapartida, fui incumbido de guardar o segredo de suas descobertas, visto como extremamente perigosas. Quem, neste mundo, não estaria disposto a sacrificar um olho de um semelhante para devolver a vida a um ente querido? Filha, eu fui capaz. Sim, de Ruiter herdei não apenas a promessa do silêncio, mas também o perfeito domínio de sua arte, desde a retirada do olho do animal até a elaboração do soro milagroso. Bem por isso, quando você morreu, aos cinco anos de idade, vitimada por uma fratura no pescoço, não pensei duas vezes: trouxe você de volta.
Longe estou de querer afligi-la. O que descreverei será apenas um alerta, para que você adote as urgentes providências que o caso requer. A abstinência da droga provoca, imediatamente, dores lancinantes. A decomposição dos órgãos é rápida e extremamente dolorosa, porquanto, mantidos os terminais nervosos, o cérebro é o último a fenecer. Ou seja: você apodrecerá em oito dolorosas horas, perfeitamente consciente de que se decompõe "lentamente". Não haverá uma segunda morte. Não, filha. Tecnicamente, você não está viva. Você está morta, é carne dada aos vermes, não obstante provisória e continuamente regenerada a cada volta que a Terra dá em torno de si mesma.
Eu não duraria para sempre e você teria de sobreviver sem mim. Não foi à toa, pois, que eu, contrariando a sua vontade e as suas inclinações pessoais, fiz de você minha auxiliar na tarefa de dissecação e vivissecção de animais. E que sempre fui enfático e exigente no cuidado com a remoção dos olhos e cauterização da cavidade ocular.
Todas as instruções necessárias para a produção da droga se encontram descritas abaixo..." Serão mesmo pestilenciais as emanações que presumo exalar de meu corpo? Não sei, embora tenha quase certeza de que tudo não passa de impressão minha. Afinal, não sinto dor alguma. Mas sei que não me foi difícil remover o olho esquerdo de Elma, minha querida companheira de tantos anos. Ao mesmo tempo em que anseio pelo prolongamento de minha "vida", os despojos do meu pai jazem aqui, ao meu lado, aguardando a regeneração. Foram-me entregues há pouco. Reanimá-los foi uma deliberação minha. E, enquanto escrevo, espero o resultado da injeção que apliquei, há pouco, no peito do cadáver do meu pai. E imploro a Deus – será mesmo a Deus? – que o olho de Elma não tenha sido o último a ser extirpado por estas trêmulas mãos de cadáver insepulto...
pra mim ele fez um engano com a filha, ele queria era ficar livre, que conto bom
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