Angel
Um conto de Marcio Renato Bordin
No balcão, os bêbados gritavam pedindo mais uma dose, cambaleantes nas próprias pernas. Uma mulher vestida em farrapos, parada na rua segurava os filhos barrigudos pelas mãos e camisas enquanto gritava pela alcunha de seu marido... Um dos bêbados... Fosse qual fosse, nem se dava o trabalho de olhar para a porta.
Uma dupla sertaneja de quinta categoria cantarolava mais uma música de seu repertorio brega. Aquilo doía mais nos ouvidos do que os gritos histéricos da maltrapilha esposa lá fora.
N’uma mesa em minhas costas, um grupo mais jovem jogava truco enquanto enxugavam caixas e caixas de cerveja... Esmurravam a mesa aos berros, subiam nas cadeiras, xingavam e riam... Minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento.
Era noite de sexta-feira. Só queria tomar algo para relaxar o corpo da estressante semana que findara. Parei no primeiro bar que encontrei. Bebericava minha cerveja no balcão. Um copo n’uma mão e um cigarro na outra. Estava ao lado dos bêbados, de costas para os jogadores, perto dos músicos... Nunca tive tanta certeza de que o inferno existe, e eu estava nele.
Ráptus: s. m.
Psiquiatr. Impulso violento e brusco que pode levar um homem a um Ato violento fazendo-o perder o controle sobre si próprio.
Eu estava prestes a sentir na pele o verdadeiro significado dessa palavra... Ráptus.
Tomava minha cerveja de modo mais célere do que de costume. Queria sair logo daquele bar imundo.
Quando, como que por milagre, fez-se silêncio imediato no local. Os bêbados, os músicos, os jogadores, até mesmo a mulher lá fora, todos se calaram. Antes que me virasse para conferir o que causara essa mudez generalizada, o silêncio fora quebrado por sons de saltos. Passos curtos e firmes.
Girei o pescoço lentamente para trás, sofrendo um estranho efeito hipnótico pelo som daqueles passos. Meus olhos a encontraram. Ela caminhava em minha direção.
Eu vi diante dos meus olhos o pecado materializado em forma de mulher.
Longos cabelos vermelhos, vestido negro, salto alto, lábios voluptuosos, seios pequenos... Sentia como se o mundo tivesse parado de girar, só ela se movia.
Aquele anjo gótico caminhava em minha direção, caminhava em direção ao balcão. Senti minhas pernas perderem as forças enquanto a imagem daquela mulher-pecado era gravada a fogo em minha retina.
Encostou ao meu lado. Seu perfume me envolveu. Aroma de orquídeas. Alcancei o nirvana. Sentia o perfume de Deus. Seus lábios se moveram, se abriram. Seus lábios... Vermelhos, lascivos, provocantes... Seus lábios, um convite silente ao beijo sabor pecado... Poucas palavras foram pronunciadas, quase sussurradas.
- Um Marlboro mentolado, por favor.
Seu pedido, cigarros refrescantes, confirmou que aqueles lábios ardiam em chamas. Sua voz soando sentenciou-me à luxúria, condenou-me à cobiça. Eu a desejava. Eu a queria.
Abriu o maço de cigarros lentamente, retirou um. Atrevida, provocante. Sem pronunciar uma única palavra, olhou em meus olhos, sorriu e sem pedir permissão, pegou meu cigarro de meus dedos, colocou o seu em seus lábios e o acendeu com a brasa do meu, devolvendo-o em seguida à minha boca. Não ensaiei nenhuma reação, estava hipnotizado por aquela mulher. Ela se virou e caminhou para fora do bar. Inerte, eu a via se distanciar de mim.
O som de seus passos, de seus saltos batendo no solo, indo embora para talvez nunca mais vê-la, fez-me despertar do transe. Não a deixaria partir assim. Paguei a cerveja rapidamente, matei o ultimo gole do copo e sai correndo de dentro do bar. Na esperança de não tê-la perdido de vista.
À cerca de 20 metros à esquerda lá estava ela, parada na entrada de beco. Ela sabia. Ela sabia que eu a seguiria. Mal apontei na porta do bar e ela, sorrindo, olhou-me por breves segundos antes de desaparecer da minha vista. Dobrou a esquina e seguiu caminhando. Novamente ouvi os sons de seus saltos se distanciando. Eu corri rápido, mas não o suficiente. Quando dobrei a rua, os sons dos passos silenciaram.
Ela não estava mais lá.
Atravessei o beco correndo, mas não completamente sozinho. De soslaio, pude observar sobre uma das paredes que ladeavam o beco estreito, um gato negro seguindo-me de perto. Um fato inusitado, mas que não obteve de mim maior atenção do que uma mera olhada de relance.
Quando aponto na rua do outro lado do beco não precisei olhar muito atentamente para avistá-la de novo. Ela estava esperando por mim, parada em outra esquina. Assim que surgi, ela repetiu o ato da esquina passada. Olhou para mim, sorriu maliciosamente tornando a desaparecer no dobrar de rua. Corria, ouvindo seus passos se distanciarem. Os sons daqueles saltos eram como os sons de ponteiros de um relógio em contagem regressiva, demarcando minha corrida. Alertando-me que eu a perderia para sempre se não alcançasse a próxima esquina antes do tempo se esgotar.
Clarões de relâmpagos no negro firmamento anunciaram que uma forte chuva em breve cairia sobre a cidade. Indiferente à tempestade que se formava, ao estranho felino que ainda me acompanhava, eu a seguia, e sucessivamente a cena foi se repetindo. Quando eu surgia numa esquina, ela estava parada na próxima, me esperando, me indicando o caminho. Sorria e desaparecia em seguida.
Os clarões foram se tornando mais intensos, trovões ribombavam com violência. E eu corria. Quatro, cinco, seis esquinas. Não sei ao certo quantas foram, ou quantas ainda estavam por vir, e muito menos para onde ela estava me guiando. Com a concentração totalmente voltada para a ruiva, demorei para me dar conta que desconhecia aquele lado da cidade. Não tinha a mínima idéia de onde eu estava... Mas eu continuava a minha caçada noturna.
Foram outras três ou quatro esquinas, para enfim na entrada de mais um beco, não a ruiva, mas o gato negro esperava indicando-me a direção à seguir. E para minha surpresa, quando eu aponto na entrada do beco, novamente a avistei, não na outra ponta e sim no centro, sob a iluminação fraca de uma luz amarela do único poste existente no local, ela dançava ao som do vento que a essa altura soprava forte e dos trovões que ribombavam bruscamente de quando e quando.
Demorei alguns segundos parado ao longe, admirando aquele espetáculo lascivo. Ela dançava. Descia e subia mexendo lentamente aquele corpo divino. Segurando o vestido com as mãos e levantava poucos centímetros exibindo-me as belas coxas. A cada giro seus olhos me fitavam, me convidavam, me chamavam para me juntar a si naquela dança libertina. Caminhei em sua direção com receio, com medo, com curiosidade. Afinal, quem era ela? O que queria de mim? O que queria comigo? As perguntas se repetiam em minha cabeça e eu as ignorava. Caminhava na direção daquela deusa de cabelos de fogo.
Quando próximo poucos centímetros, ela cessou sua dança. Ficou parada, em pé na minha frente e todas as perguntas, todas as palavras me fugiram dos lábios. Todos os pensamentos me deixaram. Sem saber o que dizer, eu a beijei. Segurei seu belo rosto com as pontas dos dedos e beijei seus lábios com desejo. O beijo coincidiu com as primeiras gotas de chuva caindo. A chuva iniciará e ganhara força conforme o beijo ganhava intensidade. Entrelacei meus dedos em seus cabelos já molhados, segurando em sua nuca, saboreei aqueles lábios sabor pecado como uma criança faminta. Virando-nos a encostei no poste, cessei o beijo poucos segundos para fazer uma única pergunta.
- Qual é seu nome?
- Angel...
Seu nome era Angel... Anjo. Não poderia ter outro nome uma mulher que transpira tentação, inspira o pecado, induz a luxúria.
O beijo continuou cada vez mais intenso. Nossos lábios, nossas línguas, nossos corpos se tornaram unos. E em pé, encostado naquele poste de luz amarelada, sob a chuva que caia torrencialmente, levantei seu vestido e a possui. Respiração descontrolada, gemidos, suspiros, palavras obscenas, unhas cravadas nas costas, puxões de cabelos. Atingimos o auge do êxtase. Ela segurou em meu cabelo e me virou, assumindo o comando, colocou-me de costas no poste. Puxou com força meus cabelos para trás enquanto seus lábios percorreram meu pescoço. Suas unhas cravaram-se em meu peito. Suas unhas cravaram-se em minha pele. Em minha carne. Cravaram fundo. Uma dor imensurável. Senti minha pele se rompendo. Minha carne rasgando. Gritei. Berrei de dor. Perdi os sentidos. Quase desfalecendo. Consegui vê-la sorrindo, segurando meu coração em suas mãos. Ainda batia. Ele ainda batia.
Ela partiu sorrindo, seguida por seu estranho gato negro que a tudo assistia.
Levando consigo o meu coração.
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