22 de out. de 2012

Acalanto das águas

Acalanto das águas 

Tânia Souza


Sentiu as folhas e o frio da terra sob seus pés descalços. No aconchego obscuro da floresta, esgueirou-se por entre as árvores centenárias, ignorando as cascas ásperas arranhando sua pele. O medo foi como uma pedra quente em seu peito, quando pensou ver nos gigantescos loureiros, vultos em meio a forte neblina. Havia um pesado silêncio no bosque que se estendia incalculável e ela poderia jurar que nunca antes pés humanos cruzaram aquelas barreiras. Mas  houve uma vez que...  buscou o ar, repetindo a si mesma que talvez não fosse lenda. Talvez fosse sua única chance.


O frio do amanhecer aos poucos desaparecia e o ar parecia agora bafejado por murmúrios longínquos. Pequenas frestas de luz invadiam os galhos das árvores mais altas e desciam entrecortados, iluminado as trevas. Plantas desconhecidas estendiam-se espinhosas e rasgavam o tecido fino que protegia o corpo de Gwem. Teve vontade de desistir, de se entregar e deixar que o Rei cumprisse   sua maldição, mas logo, crescia dentro dela a sensação de que logo seria alcançada; desde que deixara a vila, caminhara sem descanso, mas os cavaleiros não desistiriam tão fácil. 

Mas ainda havia uma chance, talvez.

Olhos. Podia senti-los, espreitando-a desde que mergulhara naquele estranho universo. Havia um cheiro de incontáveis eras e criaturas desconhecidas desafiando quem ousasse adentrar as sombras mornas da floresta. Entretanto, por mais sombrios e escuros que fossem os caminhos, as árvores e a vegetação eram verdes, vívidas. Entre pedras lisas e outras cobertas por musgos esverdeados, descobriu um veio d’água que corria entre os pedregulhos; abaixou-se, bebendo com as mãos e reconhecendo ao redor, as ervas que seu povo sempre usava para curar.

A voz acariciante de um sonho interrompeu suas lembranças, trazendo em si promessas e delírios como os que a levaram até ali. Seguiu o curso do pequeno riacho, em busca do som fascinante e, logo chegou a uma clareira, a água formava uma cacimba transparente e um fiozinho estreito de águas claras finalizava o caminho.

E então, seus olhos se deslumbraram. 

Chegou devagar, com medo de assustá-la. Não notou as lágrimas descerem e o coração apertado, entre medo e alegria perante a presença suave da magia. Mais uma vez, buscou o ar e tentou falar. Mas apenas o silêncio permaneceu.

A criatura das águas sorriu. Os longos e amendoados cabelos confundindo-se, quando ela se movia, com as raízes frondosas e troncos gigantescos que brotavam na beira do rio. A pele era  transparente e os longos cílios em torno dos olhos dourados devassaram a alma da visitante. Em meio as águas claras, a moça deslizou e as escamas prateadas refletiram a luz do sol. Gotas de um arco-íris todo seu cobriram a manhã. 

Gwen ouviu o galope desesperado dos seus perseguidores quando mergulhou os pés na água cálida, mas já não teve pressa. Ao seu redor, outros rostos surgiam e mãos suaves a tocaram até que apenas o aconchego morno das águas a envolvesse.

Aquele não era mais o mundo no qual Gwen crescera. Para homens e mulheres como ela, viriam tempos difíceis. Alguns, ouviram o chamado das árvores, outros da terra; alguns, das cavernas e até mesmo do ar. No entanto, grande parte do seu povo já não conseguia ouvir, tomados pelo medo, ardiam o fim de sua essência. Não entendia com poderia ser tão errado apenas ser o que sempre fora. Machucada, fugira dos seus carrascos em busca de um sonho, de uma lenda dos mais antigos sábios. A camponesa ouvira a sagrada acolhida das águas. 

Estava livre.

Quando os cavaleiros chegaram ao lago, apenas águas plácidas os esperavam. Para o mundo, a magia das criaturas das águas seria apenas lenda. Para Gwen, o universo renascia. 

1 de out. de 2012

Autran Dourado


"Não vi mundo. Pouco vi. Mas li vidas em segredo. E dentro de mim, uma canção, tão absurda e sincera quanto Biela, ficou. Vismundo, então."

Minha pequena despedida ao autor de Uma vida em segredo, Autran Dourado. Que das páginas de um livro me trouxe o barulhinho bom da água fresca percorrendo o monjolo, de gosto do mel puro e do abismo insondável daqueles que nos parecem simples demais. Do espanto que nos causam os que insistem em, simplesmente, ser.
E conseguem.



Apenas mais uma dessas histórias meio tristes, meio absurdas, mas que comprovam o quanto a literatura nos faz bem.

Autran Dourado 
1926 - 2012