16 de nov. de 2012

Encantada


Sete Maria tinha a vila dos meninos

Sete Maria dentro do sertão
Sete destino diferente, sete sina
Sete caminho para o coração

(...)
Das Graças encantada, moça feiticeira

Virou coruja e mora num grotão.


Sete Marias - Sá e Guarabyra


Encantada

Tânia Souza


Vila dos Meninos quase não tem meninos. Meus olhos percorrem as casas e sei que a paz dorme com eles. Ali, no casebre aconchegante, o avô insone relembra o passado, lá, no banco da praça, a moça espera o namorado. No escuro do quarto, a mãe cansada da lida sonha, enquanto o recém-nascido dorme.

Durante o dia, o sol queima a moleira das gentes, e quando noite cobre sertão, os uivos dos bichos seriam até bonitos de se ouvir... Não fossem cravejados do cheiro da morte empestando até as estrelas. 

Tempo foi que não era assim. Mas tempo conta histórias que nem sempre são reais. Tempo doura as tristezas, porque fardo ardido por demais, alma não aguenta. E assim, nascem as lendas. 

Contam que quando mainha partiu,  o dia amanheceu feito hoje, ainda não queimando de luz os olhos da gente, e os calanguinhos corriam pra debaixo das pedras. Era noite quando o Pai mandou que Maria do Rosário juntasse as meninas e fosse pra fora. Lá dentro, mãe gritava tanto que nem dava pra contar. Depois, foi chorinho ardido de criança nova. Boca não falou palavra, mas todos pensavam o mesmo: quem dera dessa feita fosse menino. 

Mas era não. Era mais uma Maria que nascia. A sétima. E na terra quebrada do sertão, nossa história - mais triste que fosse inventada - tava longe de findar. Ganhava era tinta vermelha que esse chão não cansa de beber. 

Não é lida fácil ser mulher, no sertão, menos ainda. E quando se traz a sina de ter matado mãe? Pai não queria, mas a parteira insistiu que eu fosse Das Graças. Das Dores já tinha uma na família, que fosse das Graças, então, para compensar a dor que causei.

Vila dos Meninos havia sido boa pra nossa gente. Mas cobrava preço alto. Tempo corria e hora que o mal chegava, era de sangue a paga. Uma maldição de tempos mais velhos que as pedras surgia. Os antigos contavam e os mais novos, mangavam. Muito tempo se passara desde que o mal viera por derradeira vez e o último avô já nem se lembrava.

Mas uma noite, elas voltaram. Quando as asas da morte chegaram, eu tinha sete anos.

Sempre sete. 

O vento anunciava a tempestade e o povo sorria com cheiro da chuva que se avizinhava. Mas era outro vento, esse. 

Um vento que vem zunindo, levantando as poeiras guardadas da terra e cobrando a sede que o chão gemia, dia a dia. Naquela noite, não vi estrelas, nem dormi. Lá fora, asas da morte tampavam a lua de espanto e os gritos anunciavam desgraça. Passou rente a morte no nosso telhado. Só quando sol nasceu, a certeza de mais um ano de paz era feita. Mas nalgum lugar, era choro e lamento. 

E Vila dos Meninos foi ficando sem meninos. A sombra que cobria o luar tinha cada vez mais sede e vez ou outra, rasgava o costume, levando um guri que artioso ousava sozinho no entardecer. 

Nas meninas, não bulia. Isso era o que eu pensava. 
Tempo passou, passou e passou... e vida era pedra ardendo no meu peito de menina. Cedo acostumei com desdita de pai não gostar de me olhar. Era das graças de minha mãe que ele chorava e lamentava ver em mim. 

As irmãs se foram pelo mundo. Eu fiquei. De mim, diziam no povo que variava. A cada ano, a cidade mais triste, a morte bafejava o ar e levava o que mais de precioso: os filhos da terra.


Houve caçada, os homens seguiam pistas por noites, mas do mal alado, não havia rastro algum. Mas estavam lá e eu sentia. A cada noite que o luar me chamava, eu sentia a presença das sombras. Até nos meus sonhos, eu sentia.

Pois, coisas que não se viam existiam e eu bem sabia. Eram miudezas que os olhos nenhum viam. Sonhava com estrelas e noites onde se moviam criaturas minúsculas, famintas de risos e vida. E vezes que acordava longe, perdida de tanto vagar nas imagens que os sonhos traziam, eu sabia que não fora apenas sonho. 

Eu sabia da voz que embalava meus sonhos em tristezas a cada ano.

E até que chegou o tempo que me fiz moça. Bonita, mas estranha. Encantada, sussurravam uns, maldição de pai, contavam outros. E eu apenas seguia meu caminho numa terra marcada pela dor. Sofria de doença de andar enquanto dormia. Mas eu sabia que não andava só.

Até que uma noite, as estrelas chamaram e não me neguei... já no escuro uma faísca buliu o ar, me chamando sempre. Não tive medo.

Quase dia, a caverna.

Achei ouro e pedra de valia grande no mais profundo grotão. E nas paredes, uma história que não deve nunca de ser contada. Nos bolsos e onde pude, levei para a vila as preciosidades da terra. O povo sorriu a fartura da sorte e grande festa seria armada. Mas eu não esquecia os traços em sangue na pedra.

Ainda naquela noite, elas voltaram. E descobri que minha sina de Maria, a sétima irmã em uma terra maldita não teria outra trilha. 

As chamas da fogueira não impediram que as asas me levassem para longe. O medo ferrou a alma daquela gente, mas com a paz dos dias vindouros, a história ganhou outras cores. 

No silêncio daquelas paredes onde, quando vi por vez primeira os riscos na pedra, eu soube da minha sina de Maria. Maria fada, Maria mágica, Maria Bruxa... Maria das Graças. 

Era minha a missão de guardar a terra. Encantada, virou coruja e mora num grotão, diziam, quando fiz morada no grotão sombrio. Maldita, eu sempre soube, e as sombras que voam ao anoitecer em busca de sangue, somente meus olhos podem velar. 

Não, em Vila dos Meninos quase não tem mais menino. Cuidei que não fosse assim, mas a fome e a sede delas é mais forte que minha magia e aos poucos, elas conseguem fugir... Os dias vão passando, e a luz dos meus olhos vacilam. 

Entanto, n’alguma casinha humilde, nasceu outra Maria, sétima filha que, das coisas que todos podem ver, ela vê muito mais.

E todas as noites, ensino a ela, em sonhos, a sina de ser sétima Maria.

22 de out. de 2012

Acalanto das águas

Acalanto das águas 

Tânia Souza


Sentiu as folhas e o frio da terra sob seus pés descalços. No aconchego obscuro da floresta, esgueirou-se por entre as árvores centenárias, ignorando as cascas ásperas arranhando sua pele. O medo foi como uma pedra quente em seu peito, quando pensou ver nos gigantescos loureiros, vultos em meio a forte neblina. Havia um pesado silêncio no bosque que se estendia incalculável e ela poderia jurar que nunca antes pés humanos cruzaram aquelas barreiras. Mas  houve uma vez que...  buscou o ar, repetindo a si mesma que talvez não fosse lenda. Talvez fosse sua única chance.


O frio do amanhecer aos poucos desaparecia e o ar parecia agora bafejado por murmúrios longínquos. Pequenas frestas de luz invadiam os galhos das árvores mais altas e desciam entrecortados, iluminado as trevas. Plantas desconhecidas estendiam-se espinhosas e rasgavam o tecido fino que protegia o corpo de Gwem. Teve vontade de desistir, de se entregar e deixar que o Rei cumprisse   sua maldição, mas logo, crescia dentro dela a sensação de que logo seria alcançada; desde que deixara a vila, caminhara sem descanso, mas os cavaleiros não desistiriam tão fácil. 

Mas ainda havia uma chance, talvez.

Olhos. Podia senti-los, espreitando-a desde que mergulhara naquele estranho universo. Havia um cheiro de incontáveis eras e criaturas desconhecidas desafiando quem ousasse adentrar as sombras mornas da floresta. Entretanto, por mais sombrios e escuros que fossem os caminhos, as árvores e a vegetação eram verdes, vívidas. Entre pedras lisas e outras cobertas por musgos esverdeados, descobriu um veio d’água que corria entre os pedregulhos; abaixou-se, bebendo com as mãos e reconhecendo ao redor, as ervas que seu povo sempre usava para curar.

A voz acariciante de um sonho interrompeu suas lembranças, trazendo em si promessas e delírios como os que a levaram até ali. Seguiu o curso do pequeno riacho, em busca do som fascinante e, logo chegou a uma clareira, a água formava uma cacimba transparente e um fiozinho estreito de águas claras finalizava o caminho.

E então, seus olhos se deslumbraram. 

Chegou devagar, com medo de assustá-la. Não notou as lágrimas descerem e o coração apertado, entre medo e alegria perante a presença suave da magia. Mais uma vez, buscou o ar e tentou falar. Mas apenas o silêncio permaneceu.

A criatura das águas sorriu. Os longos e amendoados cabelos confundindo-se, quando ela se movia, com as raízes frondosas e troncos gigantescos que brotavam na beira do rio. A pele era  transparente e os longos cílios em torno dos olhos dourados devassaram a alma da visitante. Em meio as águas claras, a moça deslizou e as escamas prateadas refletiram a luz do sol. Gotas de um arco-íris todo seu cobriram a manhã. 

Gwen ouviu o galope desesperado dos seus perseguidores quando mergulhou os pés na água cálida, mas já não teve pressa. Ao seu redor, outros rostos surgiam e mãos suaves a tocaram até que apenas o aconchego morno das águas a envolvesse.

Aquele não era mais o mundo no qual Gwen crescera. Para homens e mulheres como ela, viriam tempos difíceis. Alguns, ouviram o chamado das árvores, outros da terra; alguns, das cavernas e até mesmo do ar. No entanto, grande parte do seu povo já não conseguia ouvir, tomados pelo medo, ardiam o fim de sua essência. Não entendia com poderia ser tão errado apenas ser o que sempre fora. Machucada, fugira dos seus carrascos em busca de um sonho, de uma lenda dos mais antigos sábios. A camponesa ouvira a sagrada acolhida das águas. 

Estava livre.

Quando os cavaleiros chegaram ao lago, apenas águas plácidas os esperavam. Para o mundo, a magia das criaturas das águas seria apenas lenda. Para Gwen, o universo renascia. 

1 de out. de 2012

Autran Dourado


"Não vi mundo. Pouco vi. Mas li vidas em segredo. E dentro de mim, uma canção, tão absurda e sincera quanto Biela, ficou. Vismundo, então."

Minha pequena despedida ao autor de Uma vida em segredo, Autran Dourado. Que das páginas de um livro me trouxe o barulhinho bom da água fresca percorrendo o monjolo, de gosto do mel puro e do abismo insondável daqueles que nos parecem simples demais. Do espanto que nos causam os que insistem em, simplesmente, ser.
E conseguem.



Apenas mais uma dessas histórias meio tristes, meio absurdas, mas que comprovam o quanto a literatura nos faz bem.

Autran Dourado 
1926 - 2012



13 de ago. de 2012

A bela da noite e o valente Sirlônio


A BELA DA NOITE E O VALENTE SIRLÔNIO
Por Tânia Souza

Mas eita que tu é por demais de linda, heim princesa, quer sair da vida não? Pra uma gata como tu, eu dava pouso, comida e roupa lavada. Ficar nessa vidinha pra que, princesa? 
O que eu sei? Já andei pelo mundo, gata, vi coisa que tu nem sonha. Corpinho como esse, dava era muito material pra malandro e não falo de chamego bom não, tu sabe, as curvas que tem por fora, são boa por demais, mas as de dentro, valem é ouro. A parada acontece de verdade, to te falando. 
Foi lá pras bandas de Campo Grande. Conhece? Melhor, chega mais aqui, gatinha, que eu conto. Na época ainda era guri, nem conhecia esse mundão. Lembra a rodoviária velha, né. Praquelas bandas, tu manja os hotéis da área? Então, a maioria tá de porta fechando, o prédio virou um centro de lanches. As lojas do andar de cima? já era. Agora é rodoviária nova, só nos trinques, bonitona e longe pra cacete, ops, foi mal aí gatinha. Mas na época, aquilo era o fervo. Mulherada, cachaça e se o cabra quisesse, dava pra chapar legal. Tio Sirlônio não era santo, pois. Negocio feito, partiu pros furdunço. Saca só o nome da casa onde ele foi parar: Bela da Noite.
Mulher perfumosa, uísque importado e preço dobrado do que cobravam as damas da rua. Mas o tio queria coisa fina. Era como eu, o tio, não dava trela pra qualquer uma não. Mulher tinha quer ser feito tu, gatinha dengosa. Tinha mulher nada, o tio, veio em nome do patrão.

Então, noite ia alta e tava difícil achar uma mulher que enchesse uma cama, como ele queria. Até que ela apareceu. Quando viu a princesa, de cara notou que era biscoito fino, não sabia se teria grana para tanto não. Mas o aroma da moça era bom por demais, e o tio não era de resistir aos tranco de uma morena. Negócio arranjado e ela mesma oferecia o local, não carecia de ser no hotel dele não. Mas que cheiro bom que tu tem, heim gata. Pois, tu sabe né, na noite tem esses riscos sim. Quartinho era limpo e a moça, cheia dos dengos. Eita que tio suspirou largado com a festa que teria. Se teve? Ara, que os homem da minha casa não negam raça não, minha flor, que tu já viu ainda a pouco que a herança corre no sangue. O sacode foi por tudo que parte, incluso na banheira debaixo da agua morninha; serviço foi tão bem feito que a moça nem queria cobrar a noitada, mas tio insistiu, e acabou por pousar no hotel com a princesa. Tio Sirlonio não sacou que o doce, tava era doce demais.

Bebeu das mãos da moça uma tal poção revigorante “pra acordar animado pra ela”, a dondoca soprou. Daí, já viu né, sente só o aroma do embuste. Era arapuca das braba. Quando tio acordou, os músculos ainda reclamando dos exercício noturno, primeiro sorriu de gosto, depois foi sentindo o frio...

Tava na cama com a mocinha não, tava é na banheira encardida, gelo por tudo que lado e dor espalhada na carcaça moída. Bem no azulejo mofado, um bilhete das letras redonda e caprichada, mostrava um numero e dizia: “liga agora, se quer viver. Teu rim vai ganhar outro corpo, Sirlonio, meu bem.”

No hospital, falaram que ele teve sorte. A mocinha devia de te gostado dele, pois lhe levou só um dos rins. Fosse como os outros, tava é morto da silva. Pois, e é por isso que só levo meus chamegos pra casa, nada de hotel, princesa. Aqui tem perigo não, prezo por demais meu rim e aprendi a lição.

O tio? Passou bem com um rim só, e nunca esqueceu da morena. Queria o rim de volta, nada, queria era o cheiro bom da princesa que colou nele e além do rim, levou-lhe foi o juízo.

Sumiu no mundo, o tio.

Agora, chega de conversa, minha linda, que o sono ta brabo. Dorme ai, gata, amanha te dou uma carona. E já sabe, se quiser largar dessa lida, coração aqui é bruto, mas pra ti, entrego sem dó.
...
Madrugada, um carro parou em frente a casa silenciosa, um homem e uma moça abriram o portãozinho sem muito ruído. Ela levava nas mãos uma bolsinha de festa, e ele, uma maleta.

Sirlonio Gaudino e Pietra Galdino encerravam mais uma noitada. A motorista, morena bonita que só, apesar da idade marcando a face, sorriu quando eles entraram no carro. Aquele Sirlonio era cabra persistente mesmo, achou a morena e o negócio da família prosperava.

Pietra suspirou. O coração do moço, entregue de tão boa fé, até que teria boa serventia no mercado. Mas o sangue do pai correndo nas mesmas veias... E fora tão afoito que lhe dera pena servir-se de todos os órgãos.

Bem que lhe daria muito gosto rever o primo. Se ele ligasse a tempo, um rim não faria tanta falta assim...
Fim

4 de ago. de 2012

desencravei do céu a última estrela
houve lágrimas e sangue
quando corpo estranho ela caiu

agora sim

despida de sonhos
apenas a imensidão escura
dos não-horizontes

20 de jun. de 2012

Concurso de contos - Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica



Sobre o Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica, algumas considerações...

Este concurso de contos é uma homenagem ao escritor Henry Evaristo e, também, uma comemoração por um ano de existência do site A Irmandade.

Quem conhece um pouquinho do grupo, sabe que ele nasceu em um fórum, em conversas de amigos em torno de uma paixão comum, a literatura fantástica, principalmente no gênero terror. Quando o Henry faleceu, ficamos um tanto órfãos, mas a paixão pela literatura permaneceu e o site foi o resultado disso.

E em sua homenagem, criamos o “Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica”. Um concurso de contos para quem gosta de escrever... e ler. Como prêmio, mais de quarenta livros doados por amigos autores e editoras.

É isso, esperamos vocês por lá, e meus sinceros agradecimentos aos amigos e colaboradores d’A Irmandade.

Saiba mais Aqui.