12 de abr. de 2011

Filho da escuridão



Não deixe de conferir, no blog Fantasia & Terror, do meu amigo , o conto  Sangue Maldito ,  os primeiros instantes de sombra e dor deste filho da escuridão. 


Filho da escuridão

Por Tânia Souza


Nasci no dia de minha morte!
Ah, nascer quando a morte é apenas o sono sem sonhos em um repouso eterno? E se pudéssemos escolher? E se você soubesse? E se você se lembrasse? Você escolheria a vida? Ou apenas o sono eterno?
Cada instante deste suplício permanece em minha mente. Quem poderá dizer que se lembra do próprio nascimento? Do instante derradeiro no qual abre os olhos para vida e existir torna-se enfim o seu conflito? Pois eu me lembro e as lembranças desse sono do qual despertei retornam a mim com assombro. No principio havia apenas a escuridão. Um longo e profundo negrume me envolvia enquanto uma febre rubra tomava meus poros. A dor confundia-se com a fome e eu permanecia encolhido em posição fetal, me contorcendo em meio aos sonhos e mistérios de uma existência fantástica. A longa escuridão foi meu berço. As trevas geravam uma nova criatura e o mundo lá fora, em seu estranho frenesi, talvez nem soubesse. 
A febre corroia-me as entranhas como se um fogo líquido estivesse passando entre as veias.
Alguns momentos haviam sido insuportáveis e lamentei longamente, no limbo da semi-consciência, implorando para permanecer no escuro, implorando pela morte. Mas ela não viria. Não mais. A eterna escuridão continuaria comigo.
A energia pulsando em meu sangue maldito ensinava pelo instinto a razão de uma vida de estranheza, de uma breve existência como um corpo estranho encravado na sociedade em que cresci. A certeza de nunca haver de fato existido foi meu primeiro pensamento. E então gritei.   
Gritei e na dor, despertei enfim. Foi meu salto na escuridão.
Ah, abri meus olhos a um abismo extasiante de prazeres e sombras mórbidas. Meu primeiro impulso foi correr pela noite, mas ao mesmo tempo, sentia-me fraco, sufocado pelas sensações e cores de um mundo novo. Naquela noite, apenas meu lamento longínquo percorreu a escuridão, trêmulo e horrendo. Os insones, os sonhadores, os seres da madrugada arrepiaram-se e encolheram-se, pois pressentiam que algo nefasto estava à solta. Naquele lamento, um mal horrendo se vislumbrava e nada, nada seria como antes.
Desde então eu não sabia, mas não muito longe dali, do alto de uma torre, uma criatura de trevas e horror puro sorriu com ferocidade ao ouvir-me gritar. Estava feito. Era hora de seu legado, da sua herança ser transmitida. Mas não nessa noite, o tempo seria o seu aliado. Seus olhos avermelhados luziram, mas quando viram ao longe um movimento, por algum tempo, esqueceu-me, pois era hora da caça. Não havia espaço para um recém criado quando a fome e o instinto imperam.
Na velha casa, eu tive medo, não o medo comum dos mortais e sim, medo mesclado a necessidade de sobrevivência, quando um cheiro pungente despertou minha atenção, era a fome estava corroendo meu corpo. As malditas lembranças surgiram. Ah, onde ela estaria? Ela que com voz suave afastara meu medo e mais de uma vez, me deu a vida? “Beba, meu filho. Sorva meu sangue e viva. Eu já estou morta, mas você pode viver. Uma vida maldita, mas ainda assim, uma vida.” E eu bebi. Naquele instante o garoto foi embora e com ele toda inocência.
Podia ouvir os cães em volta da casa. Ganidos baixos e chorosos, de fome e pavor indescritível frente à lembrança de algo que desconheciam. Então, eu a vi. Na sala, a um canto, o corpo dela jazia.  Toquei com cuidado a face sem vida. Se pudesse, choraria, mas minhas lágrimas haviam secado, não, a dor de um monstro não suportaria mais ser expressa em lágrimas. Ergui-a nos braços sem esforço algum, ainda que meu corpo fosse miúdo, uma força sobrenatural me animava e a levei para o quarto. Foi a última vez que vi minha mãe, depositei seu corpo sem vida sobre o leito e fechei a porta.
Ela seria vingada.
Os cães, eles não se aproximavam, a noite estava clara e o luar iluminava o gramado. Os animais rosnavam baixinho. Um por um, aqueles que outrora me protegeram me serviram de alimento, enquanto a noite crescia assustadoramente lá fora e só se ouviam os débeis ganidos, eu esperei. Mas ele não veio. Quando as horas foram passando, a necessidade de me esconder imperava. Para onde ir? O luar já sumia no céu e um novo dia ameaçava nascer. Eu era então uma fera aprisionada em um universo de odores e sensações absurdas, enquanto o poder do sol que nascia ia me enfraquecendo, mais uma vez o medo me dominou. Subi as escadas sofregamente e no meu quarto, fechei todas as janelas, cobrindo a cama com todas as cobertas e tapetes que encontrei. Um torpor suave me invadiu e encolhido, como um bicho machucado, fiquei escondido naquele canto escuro até que um longo sono me dominou.
Assim foi o primeiro dia da minha existência, até que por muito tempo eu dormi.


***********


O céu cobriu-se de vermelho enquanto o sol se recolhia e uma tempestade se avizinhava no horizonte. A noite enfim chegou e com ela, a mais perversa criatura das sombras voltou. Silenciosamente aproximou-se da casa em escuridão. Desta vez não houve a recepção dos cães; desta vez, a jovem mãe não o esperaria... A porta estava entreaberta e ele caminhou lentamente pelos corredores da casa. Da casa onde conheci o amor e sonhei os primeiros passos de uma vida que jamais seria minha. O conhecido cheiro da morte antecipava seus passos. Senti sua presença seguindo a trilha dos cães, mortos e espalhados pela casa. Ainda vejo o pelo escuro dos soberbos animais cobertos pelo sangue ressecado. Cada um deles trazia a garganta estraçalhada. Sim, a trilha de cadáveres o levaria ao seu filho. A mim.
Quando o demônio entrou no quarto, a figura sombria pareceu gigantesca entre brinquedos de criança, carros de corrida, pôsteres de artistas e revistas, sua sombra se espalhava. A cama estava escondida sob cobertores e tapetes. Eu ainda dormia, protegido sob a única forma que encontrara para me ocultar da luz. Mas meu sono sem sonhos era perturbado pela presença nefasta, pela sapiência de seus passos horrendos levando-o a mim.
Vi quando as unhas enegrecidas arranharam as cobertas que cobriam a cama e as levantaram, seus dentes amarelados arreganhados num arremedo de sorriso. “Onde mais estaria a criança senão escondida sob a cama?” ele murmurou. Eu era ainda a visão de um sonho, cabelos caiam em cachos sobre o rosto, a pele corada de uma face angelical, recém saída da infância, enganava ainda uma inocência que já estava morta. Senti o seu orgulho, observando meu sono por alguns instantes, mas logo levantou a cama, atirando-a para longe com violência. Meus olhos se abriram em seguida, assustados e, pela primeira vez, meus dentes se revelaram agressivos enquanto meu ódio nascia em um rosnado gutural. Eu via a face odiosa a minha frente e desejava com toda força de um coração que já não batia, cravar as unhas no rosto encovado, furar os olhos vermelhos e cruéis.
“Venha comigo meu filho” a voz era sibilante. Não era um pedido, era uma ordem que eu não estava disposto a seguir.
Encarei aquele pai desconhecido. Aquele a quem por muitas vezes chamei e ansiara, jamais sabendo do destino sombrio que me reservara. O demônio era alto e forte. Frente a ele, mais do que nunca  tive consciência da meu corpo franzino “Eu não tenho pai, senhor”
                Aquele, o filho do inferno, o filho das dores do mundo, da dor e da escuridão, não, aquele não era o meu pai, era apenas uma criatura imunda frente a mim. O assassino de minha mãe.
                “Eu não tenho pai... senhor.” E minha voz soou fria, desconhecida.
                Então ele riu, ou algo parecido com isso. Como serpentes e guizos venenosos, como grunhidos selvagens e lamentos oriundos de lugares obscuros ele falou de sua solidão. Das tentativas frustradas durantes os séculos. Do sonho de ter um herdeiro, um filho para seu reino de sombras. E por fim, da concretização deste sonho. Do encontro com ela na varanda solitária. Da luta de uma moça corajosa para me dar a vida. Eu era a realização do sonho de um deus.
                “Você é o meu filho! E voltei para reclamá-lo.”
                A fome doía-me horrivelmente e ele sabia. “Estive e sempre estarei contigo. Venha comigo e não sentirá fome nunca mais” Não perguntei por que a matara, simplesmente não havia sentimentos puros na criatura, ele me queria, apesar de não haver espaço para amor em seres da escuridão. Mas eu havia conhecido o amor e a dor de perdê-lo. E por isso o ataquei!
                Não consegui sequer feri-lo, cada vez que me lançava contra ele, era jogado para longe, cada vez mais fraco, cada vez mais ferido. Até que ele se cansou da brincadeira e num golpe mais forte, rasgou minha carne, suas unhas estraçalhando meus ombros enquanto sentia o ardor do seu ataque como um veneno em minhas carnes.
                Eu fugi. Não fui um covarde, simplesmente, não havia mais como permanecer naquele jogo de caça e caçador. A fome doía horrivelmente quando sai. Uma ridícula figura cambaleando pelas ruas escuras da cidade, um predador inexperiente, desconhecendo sua força. A criatura me seguia nas sombras, podia sentir sua presença apesar de não vê-lo. Meu ombro ferido e lacerado latejava.
 Os garotos do cursinho riam enquanto bebiam na esquina. A garrafa foi jogada e o som do vidro quebrado atraiu minha atenção. O cheiro deles era doce e minhas narinas se agitaram como as de um bicho faminto.  Lembrei-me dos cães e tentei voltar, mas eles me viram. Mais uma vez riam, me empurrando, repetindo a velha cena, quando um rosnado selvagem me deu forças e saltei sobre um deles, cravando os dentes no rosto do garoto, arranquei um naco de carne, mas não lhe dei chance de fuga, cravei os dentes no pescoço e comecei a sugar o sangue que tanto desejava. Ah, o deleite das sombras mais uma vez era meu. Quando os outros fugiram, ele os trouxe de volta. Com fascínio observei o ataque, limpo, sutil. Sem desperdício, sem sangue derramado. E a culpa sobre meus pensamentos me invadiu, vi os corpos dilacerados ao meu lado e soube que éramos iguais.
Naquela noite eu fugi. Ele apenas me observou sumir na escuridão. Para onde eu fosse me encontraria quando quisesse.
“É seu destino, é a sua herança.” e sua voz ecoava dentro de mim.
Aquele a quem deixei naquela noite viu uma criança sumir no breu, uma criança monstruosa, o seu filho sonhado, seu herdeiro. Uma criança da noite.
“Estarei sempre contigo”, ele dissera. E jamais pude mensurar o poder dessas palavras. E por muitos e muitos anos, nunca mais o vi.

*********

A moça me seguiu por duas noites seguidas. o mundo havia mudado, mas ladrões e quadrilhas eram comuns em cidades turísticas. Entretanto, não se parecia com uma ladra comum, me parecia tão jovem. Talvez 17 anos, cabelos presos e trançados. Pálida. Abandonei o calçadão a beira da praia e segui pelas ruas estreitas. Ouvi quando encontrou os predadores da noite. Pensei em ignorar seus gritos, mas fui vencido pela curiosidade.
Estava cercada por três homens. Quando me viram chegando, avisaram. “cai fora pirralho” sim, frente a eles eu ainda era um pirralho, tinha então a aparência de um jovem de 18 anos, mas muito maior havia sido o tempo passado.
Não perdi tempo com explicações, o tempo havia refinado minha selvageria, minha sede e meus instintos. Em segundos, jaziam no chão. Não era hora de me alimentar.
Eu a olhei. E ela me encarou.
Havia algo em seu olhar. O cabelo escapou das tranças e as madeixas enroladas caíram sobre o rosto, eu reconheceria aqueles cachos onde estivesse. Foram o divisor entre a fera e o resto da criança que eu fora. Meu último resquício de humanidade antes da fera vencer.
Foi logo que deixei minha casa, eu era então ainda um menino trêmulo e assustado, tomado pela fome, pelo medo. Dormia nos becos e esgotos durante os dias e a noite, procurava me alimentar de pequenos animais quando a fome me deixava tonto a ponto de perder os sentidos. Foi quando a vi. Alguém havia machucado muito aquela menina. O frio estava intenso e ela tremia, deitada sobre um jornal naquele beco imundo. Quando me viu, se arrastou para longe, mas ao ver que era apenas um menino, deixou que eu ficasse. Seu nome era Isabel e eu fiquei. Logo ela adormeceu e por muito tempo, observei seu sangue correndo nas veias, notando como estas pulsavam quando ela estremecia, tomada por algum pesadelo. Como a luz se refletia na pele marcada e nos cabelos cacheados. Ela dormia. Uma das mãos estava embaixo do rosto e os cabelos caiam sobre o pescoço. Cachos anelados e sujos caiam sobre a face e fiquei imóvel, vendo seu sono.
Foi o meu salto para a escuridão. Eu estava tonto pela sede. Um pequeno gemido de protesto escapou dos lábios da moça quando meus dentes perfuram o ombro macio, mas isso não me deteve. O sangue que agora corria em minhas veias me dava forças para continuar. Tudo o que importava era a fome que me consumia. Seu sangue saciou-me e a deixou ali, no mesmo beco onde o frio e o abandono sempre estiveram com ela.
Só a encontrei novamente quando senti seus passos me seguindo no meio da noite e soube que ainda vivia.  E que não era a mesma.
Com voracidade ela se debruçara sobre os corpos caídos e sugava-lhes o sangue com experiência.
Eu também deixei uma herdeira.

*********

            Isabel e Andrei. A princípio não quis tê-la comigo, mas como sempre, a culpa foi certeira na minha decisão. A culpa e algo mais. Eu a havia transformado. E como eu, ela aprendera sozinha a sobreviver.
Minha querida era cruel. Gostava de matar e sorvia com prazer o sangue que lhe dava a vida. Entretanto, eu pude ter um pouco de paz. Perder-me nos seus cachos avermelhados e esquecer que um dia, teria que enfrentá-lo mais uma vez. Em algumas épocas do ano, principalmente no inverno, ela se afastava e por vários dias, sentia o peso da solidão.
Continuamos a viajar e o tempo para nós passava com lentidão. Muitas coisas não sabíamos sobre nossa natureza noturna, mas certa vez, encontramos com alguns de nós que podiam andar durante o dia e transformarem-se em criaturas quadrúpedes, estes era selvagens e além de sugar o sangue, comiam a carne de suas vitimas. Isabel encantou-se com eles, mas logo os deixamos. Esconder-se do sol, não pisar em solo sagrado. Crucifixos eram temidos, mas muito se duvidava de sua eficácia. A madeira era certeira para tirar-nos a vida. Possuíamos muitas habilidades: eu flutuava, Isabel não conseguia, mas sua força era terrível quando se alimentava. De alguns seres, ouvíamos pensamentos, outros, eram-nos mentes escuras e cercadas. Lutamos raras vezes com vampiros, a verdade é que existiam poucos como nós no mundo. E não estavam dispostos a dividir os conhecimentos. Matávamos sempre nossas vítimas. Eu principalmente temia criar outros. Isabel era minha luz, entretanto, a mais concreta presença das sombras. Se demônios amassem, eu ousaria sonhar que a amava. No entanto, amor é sentimento de criaturas puras e estávamos imersos em crueldade e escuridão. Mortos que caminhavam esgueirando-se entre as sombras. Demônios que dependiam do sangue para viver. E eu, um monstro marcado pelo desejo de vingança, ferido por lembranças de um mundo distante.  
Até que finalmente, meu passado veio de encontro a mim.


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Era inverno e o frio espantava as pessoas das ruas. Sai para caçar sozinho. O mar estava revolto e segui os passos do homem que caminhava, olhando com receio para o cemitério que circundava a rua. Mal sabia ele que dos perigos do mundo, os piores andavam livremente, criaturas tão ou mais escuras e nefastas que eu. Anjos decaídos, demônios lascivos. Seres inomináveis. O seu medo era doce e me atraia. Esperei para atacá-lo na hora mais calada da noite, quando ele escrevia freneticamente, os olhos buscando por alguns momentos a escuridão do mar lá fora pela janela entreaberta por onde entrei. Ele também me atacou, tirando um taco de beisebol escondido sob a cadeira onde sentava-se, lutando sofregamente pela vida. Diverti-me por alguns instantes, gostava quando minhas presas lutavam e como sempre, o prazer da caçada suplantava meus pudores. Mas logo me cansei e senti a carne suave rompendo-se aos meus dentes, o sangue vivido me percorrendo apagava qualquer instinto moral.
 Foi nesta noite, com o instinto ainda em febre, que senti sua presença antes de vê-lo, eu soube que ele voltou. Aromas rançosos e antigos invadiram a casa onde vivíamos por aqueles dias. Mas havia algo mais.
Um manto de veludo negro pairava sobre o salão e sobre ele, Isabel e aquele que me dera à morte estavam juntos. Beijavam-se e em seus lábios sanguinolentos, uma paixão violenta da qual jamais fui capaz.
Entanto, já não havia em mim sentimentos ou emoções, apenas a certeza de que não havia sentido algum em existir. Apenas meu legado de escuridão.
“Eu sempre estive com você, meu filho, e este foi meu presente!” seus dentes estavam cobertos pelo sangue de Isabel, mas ela sorria, o vestido descoberto, a pele translúcida coberta por pequenas mordidas.
Meu corpo fluía em leveza e o antigo ódio me fazia flutuar. Mas ele riu e Isabel avançou sobre mim, protegendo-o. Parei.
Isabel nunca esteve tão bonita, os cabelos avermelhados sob a luz das lâmpadas, a pele iluminada. Mas os olhos eram frios. Seus olhos eram dele. Ah, minha Isabel nunca fora de fato minha. Eu sequer havia transformado-a numa igual. Naquela noite, após deixá-la, ele se aproximara e fizera a transformação, oferecendo-lhe seu sangue infame. Eu deveria saber, ele fora o seu pai, amante e senhor. E o tempo todo, ela estivera reportando-se a ele.
            “Venha comigo, é chegada a hora de assumir seu lugar ao meu lado, no meu reino”
 “Isabel!” Chamei por ela, mas quando ela baixou os olhos, soube que não haveria chance. Encarei finalmente aquele que me chamava de filho. Seus olhos vermelhos me fitavam e os dentes amarelados e pontiagudos arreganharam-se. Fitei as unhas enegrecidas, a pele macilenta e os olhos frios. Séculos de tentativas e finalmente, eu estava ali, a sua frente.
A criatura demoníaca ainda me inspirava medo, pairando sobre a sala, tendo Isabel ao seu lado, ambos estendendo-me as mãos.
Com voracidade o ataquei e minhas unhas tentaram atingir o rosto macilento. Entanto, ele apenas recuou e Isabel me atacou com força muito superior a que costumava ter, ela estava forte, o sangue dele a fortaleceu. Defendi-me de suas unhas e golpeei sua face, jogando-a contra a parede, que estremeceu, rompendo-se em alguns pontos. Ela caiu, mas por breve instantes, logo avançou novamente sobre mim. Saltei e grudei minhas mãos no teto, muitas habilidades nós aprendemos juntos, conhecemos nossas fraquezas em meio a beijos e risos. As lembranças destes momentos haviam desaparecido, ela perseguia-me e a força com que se jogou estraçalhou o forro de madeira. Caímos juntos e rompemos o solo enquanto ela mordia minha carne com ferocidade, a casa estava sendo destruída e na saleta abaixo de nós, uma armadilha se revelou. Estacas e crucifixos esperavam por ele. Em todos os lugares por onde estive, sempre preparei armadilhas esperando por esse dia, mas agora eu sabia, ele sempre estivera informado de cada passo meu. Tão óbvio, tão inútil. Mas uma única queda seria fatal.
Segurei-a com firmeza e lentamente, flutuamos na sala. Ela rosnava, os dentes ainda cravados em mim. Afastei-a e um pedaço de meu ombro se foi entre seus dentes.  Ah, como eram lindos os olhos de Isabel, os lábios cheios e sangrentos, senti vontade de beijá-la uma última vez, entretanto, meu fascínio se fora e segurando-a com firmeza para longe de mim, soltei seu corpo sobre o que antes fora um belíssimo piso de madeira. Isabel nunca soubera planar e, lá embaixo, madeira quebrada, estacas e crucifixos armados a receberam. O seu grito se espalhou enquanto as chamas a consumiam. Sim, madeira era-nos letal.
Agora, éramos somente eu e ele.
O antigo e novo.
Pai e filho
Ambos, filhos da escuridão e da morte.
            “Por bem ou por mal, você vem comigo”
            Não respondi, com rapidez avancei golpeando seu estomago, jogando-o para longe. Ele contra-atacou atingindo-me no ombro ferido. O tempo todo, tentava convencer-me do meu legado. Mas tudo o que eu via eram os olhos de minha mãe, e mordi seu pescoço com ódio. Não provei seu sangue, cuspi para longe como se mais uma vez, renegasse tudo que viesse dele. Ele avançou e dei um pulo para trás, para escapar do golpe que viria, entretanto, ele foi mais rápido e jogou-se sobre mim. Senti o peso e a força de meu oponente me imobilizando enquanto seus punhos me atacavam. Cada golpe quebrava meus ossos e cortava minha pele.
“Eu ficarei com você.” Não pude reconhecer a fragilidade de minha voz. Sei o que ele via, um jovem de cabelos revoltos que acabara de perder sua única companheira. A face cortada e deformada por seus golpes. E se afastou. Ergui-me com dificuldade.
Estávamos ambos em pé no que restara da sala.
Eu sorri e então, descobri sua fraqueza, ele poderia me ferir mil vezes, mas matar-me seria a sua derrota. A amargura de não poder vencê-lo me sufocava.  Ele também riu, mas a risada maléfica daquele que era o meu pai me atingiu. Ao meu redor, a casa onde vivi tantos anos com Isabel estava destruída, o rico piso de madeira estava aos pedaços e eu podia ver onde Isabel caíra. As estacas perfuraram seu corpo e as chamas a consumiram até ser pó.
Lentamente descobri meu destino.
Eu poderia roubar dele o seu maior sonho. Deixei meu corpo planar sobre as estacas, os pensamentos fixos nela, minha mãe finalmente seria vingada. Se eu jamais poderia vencê-lo, a eternidade ao seu lado... nunca. Ele estaria novamente sozinho. E finalmente, eu já não existiria. Toda dor e consciência se desvaneceriam, quando as chamas me transformassem em pó, apenas pó e escuridão.
Ele voou em minha direção tentando impedir-me.
Ah, mas não se pode negar o poder de séculos de instinto e sombras. Eu sou um monstro de escuridão. Toda a poesia me foi negada e durante anos de aprendizado e caça, somente o ódio me restara, o ódio é meu pai, meu filho, minha mãe, meu irmão, minha fé. E o ódio me fez voltar. Aos anjos ou demônios, não é permitido escolher. Eu deveria sobreviver ou morrer tentando.
            Quando ele me tocou, a pele fria e pegajosa tentando impedir-me, minha decisão já estava tomada, rolamos para o lado e voltei-me para ele, cravando os dentes em sua jugular. Suguei seu sangue com ferocidade enquanto rolávamos pelo chão. A força e a essência da criatura estavam em mim. E seu horror me foi tão grande que me afastei, antes, rasguei sua carne. Ele estava fraco, apoiando-se na parede. Mais uma vez, ataquei. Com as unhas dilacerei sua face, sorri, provando um filete de seu sangue. Cada gota de seu sangue seria derramada. Terminei de destroçar a sua jugular, enquanto o seu sangue espirrava em mim. Ele estremeceu e uivou. Lembrei-me da ultima vez que o ouvira uivando, fora há tanto tempo e a lembrança do passado me fez atacá-lo mais uma vez, desta vez, a pele cinza e esbranquiçada estava destroçada pelas minhas unhas e dentes e, trêmulo, ele tentava estancar o sangue com as mãos. Lá fora, o sol nascia e ameaçava entrar na casa pelas janelas e paredes destruídas. Enfim eu o via arrastando-se como realmente era, um nada, um verme. E seu legado finalmente era meu, viera no seu sangue, no sabor e na sapiência de seus passos pela terra por tempos infindos.
            “Andrei, ajude-me” Ele me implorava e pela primeira vez, ouvi meu nome nos seus lábios.
            “Andrei não existe mais... meu pai.”
             Finalmente, eu o reconhecia como o meu criador e, como criatura perfeita, eu soube que só havia espaço para um. Em arremesso certeiro, joguei a velha escrivaninha em direção ao teto, protegendo-me nas sombras enquanto o sol invadia a casa, queimando-o até ser apenas... nada.  
Eu sou o filho da maldição. Caminho pelas ruas e confundo-me aos passos trôpegos de bêbados e prostitutas. Perdido nas grandes metrópoles entre semáforos e neon.  Estou em meio aos sons alucinantes dos grandes centros ou no silêncio das varandas. Sou o vento balançando as janelas das pequenas cidades do interior e o uivo das árvores distantes no campo. A beira mar, sou a sombra que te espreita, a fúria nas ondas do mar; nos desertos, o voo sem sombra, a carne sem alma, um peito sem coração. Talvez você sinta minha presença. Sou feito da consistência do medo, da sombra. Alguns pedem por mim, anseiam por meu beijo, outros, tem apenas o medo. E deste medo, também me alimento. Sou o filho das sombras, a morte que anda e neste instante, posso estar a sua espreita, o seu sangue ilumina minha noite eterna.  Pois sou o filho da escuridão.

3 comentários:

  1. Oi T! Obrigado por aceitar o desafio e por nos presentear com esse texto sensacional. Esteja a vontade para a réplica, comece uma história para que eu a termine.
    P.S. Meu taco de beisebol está aqui, estou de olho na janela.
    Valeu!
    Flávio

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  2. Posta com perfeição a luz sobre as sombras eternas, mostram que o amor e a vida existem até mesmo entre aqueles que não tem vida e amores.

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  3. T, depois de tantas reticências e conflitos, conseguistes!! Em minha opinião reside o gosto indiscutível pelos seus textos, essencialmente naqueles onde podemos viver toda a força da literatura fantástica nos cursos do seu mais apaixonante gênero: o terror!!! Showwww!!!

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