23 de ago. de 2009

Sangra o Luar


Sangra o luar...

Em teu pescoço suave escorre a noite
embriaga-me o néctar da vida Eterna
alma tua percorrendo minhas eras

Grito lascivo uiva ao infinito
em carne tua meus caninos enterram-se
Saciados sonhos, tristezas, quimeras

De fome, febre e sede, sangra o Luar...
Estremece a noite: deslumbrante rubi!


Tânia Souza

21 de ago. de 2009

Fome Voraz

Fome Voraz

Todas as noites, ela passava por aquele barzinho da esquina, cadernos e livros desequilibrando-se nos braços finos. Os bebuns conheciam seus passos, ar ligeiro, óculos na pontinha do nariz! Era bela sem sê-lo, seu dom: causar sorrisos... E inesperadas ternuras.

Foi quando o jovem aparecera. Orgulhoso, calado, ele a vira, e desde então, há seis meses, a mesa da esquina era do desconhecido. Depois que ela passava, ele tirava uma grossa gorjeta e partia na noite escura sem dizer nada, o rosto em sombras. Todas as tentativas de comunicação foram ignoradas.

Todas as noites, ele a via, doce, sozinha, distraída... como uma chama na escuridão da noite, ocupando-lhe os pensamentos e desejos. Uma sede outrora perdida o inundava ao ver os traços delicados e rosados, os cachos castanhos emoldurando o rosto meigo.

Todas as noites ela o via, sozinho, pensativo, sombrio.

Os olhos seguiam-na quase como um vício, os freqüentadores do bar observavam desconfiados, a fixação do desconhecido, noturno e calado. Sussurros sobre necessárias providências, avisos velados e totalmente ignorados, se alguma suspeita atitude partisse do rosto pálido, tristes figuras soluçariam uma busca de soluções.

Atípica noite aquela, quando uma densa neblina começou a cair lentamente em volta ao bar, escondendo o luar num denso mergulho.

Era noite, já alta, e ela estava atrasada, os poucos freqüentadores distraiam-se no bilhar, e quando o desconhecido esgueirou-se em busca do que almejava, não foi sequer notado. Os caminhos de uma neblina calma cobriam a noite outrora translúcida.

— Espere!— A voz era doce, algo urgente. E ela esperou, calada, imóvel.

Quando o jovem se aproximou, o corpo delicado da menina virou-se lentamente, o rosto redondo, os óculos na pontinha do nariz, ela o fitou, um sorriso desenhado-se nos lábios cheios.

Olhos agudos, confiantes, ele disse, num tom quase profano, enquanto se aproximava:

— Eu sou Victor, qual o seu nome, menina?
— Esmeralda.

Ele quase não ouviu o nome balbuciado, mas sorvendo a doçura da voz com voracidade, estendeu as mãos antecipando a queda dos cadernos, aproveitando para tocar os dedos delicados. Tudo está saindo de modo perfeito, ele pensava, a doce criatura seria sua ainda aquela noite! E suspirou, sedutor:

— Sempre te espero, minha noite não se completa desde que a vi pela primeira vez, e, há seis meses, desejo falar com você..

— Eu... queria te conhecer também. Sim... seis meses, eu também te vi...

— Não tem medo de andar sozinha por aqui? Pode ser arriscado.

Ainda sorrindo ela explicou que já havia aprendido a se defender, além de, indicando a direção do bar, ter amigos na noite. Assim dizendo, começou a caminhar, Victor a seguia, passos lânguidos em direção a noite cada vez mais cerrada, ouvindo a voz ainda adolescente explicando o motivo do atraso, sorrindo da ingenuidade da garota, era mesmo muito meiga, desconhecendo assim as armadilhas da vida, cada minuto daquela espera tivera valor.

Na esquina escura pararam, quando os braços de Victor a envolveram, Esmeralda suspirou de prazer antecipado, esperava aquele momento com ansiedade. O corpos entrelaçaram-se, e quando os lábios atingiram o pescoço desejado, um grito se fez ouvir, desaparecendo num longo murmúrio.

Era a fome, ancestral, herdada sem pedidos, transformada agora em doce vício. Era a fome, era a volúpia da caçada, o sabor da carne despedaçada a cada mordida,o monstro vencendo o humano, o sangue sorvido com desejo voraz, os dentes rasgando a carne tenra, e a noite como única testemunha.

A lua reaparecia tímida no céu, arisca, quando Esmeralda mordiscou o lábio inferior, satisfeita, limpando com ponta da língua o resto de sangue ali presente, a satisfação invadindo seu corpo, seu sangue, sua mente. Por seis meses ela o chamara, até aquela noite, quando enfim a sua fome fora satisfeita.

Empurrou delicadamente com os pés os ossos que amontoavam-se descarnados, brilhando ao luar. O sabor dos apaixonados era mais doce, intenso como um vinho encorpado, e por mais seis meses ela poderia esperar, estremecendo com a doçura daquela alma melancólica percorrendo seu corpo.

Até a fome de novo chegar, até o próximo escolhido chegar ao seu destino. Esmeralda desta vez desejava provar um sabor antigo, queria a experiência de muitas noites deleitando seus sentidos, e o novo professor de Literatura já a fascinara.... Sim! Sua escolha estava feita, sabia que a paixão os deixavam ainda mais saborosos, seus caminhos de sedução teriam início na noite seguinte!

20 de ago. de 2009

No beijo da brisa fria

No beijo da brisa fria

Despertei assombrada em noite sombria,
Oh, ardores dos mais cruéis e impossíveis.
Vampiro de mim... Incubus me prendia
Despertei assombrada em noite sombria,
Em meu corpo, deslizava veneno e agonia
Prisão de insanidade, delírios terríveis.
Despertei assombrada em noite sombria,
Oh, ardores dos mais cruéis e impossíveis.

15 de ago. de 2009

O medo, o homem e a literatura

O medo, o homem e a literatura

Escrito por Tânia Souza


"A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido.”
( H. P. Lovecraft )

A literatura é uma arte de constante provocação, de pura inquietação. Provoca a beleza, provoca o espanto, encanta, surpreende, recria e cria. Leva de leve pelas mãos e inesperadamente joga o leitor entre sombras de dor ou lago de risos. Com ela, sentimentos como o amor, a raiva, o ciúme, a esperança, a tristeza, a alegria, o desejo, a inveja, a amizade e tantos outros, recontam a historia do homem. Seres comuns, divinos, fracos, homens, bichos e deuses, meros objetos, nada nem ninguém passa impune, ou imune, pela obra literária.
O poeta, o escritor, o romancista, aquele que tem em mãos o papel, o lápis, o computador, e nos pensamentos uma inquietação, uma eterna procura, é ele o demiurgo, o criador e a criatura das palavras. Escuta os sussurros das épocas, dos homens, da vida e desenha com seus vocábulos um universo, o texto.
Entre os sentimentos que caminham junto ao homem, é o medo, ao lado do amor, um dos sentimentos mais constantes. E do medo a literatura fantástica suga cada suspiro, transformando em verso ou prosa cada bater de um coração assustadiço. Quando fala-se em literatura sombria, fantástica ou mórbida, uma questão que incomoda, e por isso importante, por parecer ainda enigmática e sem solução, é a aparente dicotomia entre terror e horror. Ambas arrepiantes, ambas controversas.
Há, de fato, a necessidade de se optar por uma delas quando a pretensão é escrever sobre o gênero. Após algumas pesquisas e leituras sobre o assunto, a questão ainda é um entrave, que parece ainda maior entre escritores e críticos da literatura de terror/horror. A princípio, o horror parece ser uma reação física ante o medo, ao sobrenatural, ao desconhecido, a ameaça e crueldade da realidade. Nos dicionários, a definição das mesmas parece convergir, vejamos algumas delas:
Terror sm. 1. Estado de grande pavor. 2. Grande medo ou susto.
Terror sm. 1. Estado de grande pavor ou apreensão. 2. Pessoa ou coisa que espanta, aterroriza.
Horror sm. 1. Sensação arrepiante de medo, de pavor. 2. Receio, temor. 3. Repulsa, aversão. 4. Aquilo que inspira horror.
Horror sm. 1. Atrocidade, barbaridade. 2. Que causa pavor. 3. Grande medo, pavor. 4. Repulsa; aversão.
Alberto Manguel (2005, p.10) em sua coletânea Contos de horror do século XIX, cita Ann Radcliffe, na tentativa de definir essa conturbada relação entre terror e horror “O terror e o horror possuem características tão claramente opostas que um dilata a alma e suscita uma atividade intensa de todas as nossas faculdades, enquanto o outro as contrai, congela-as, e de alguma forma as aniquila”. Edgar Alan Poe e Lovecraft, mestres da literatura sombria, inspiram algumas dessas dicotômicas definições. O terror de Poe seria mais explicito, em Lovecraft, sugerido, inominável, de fato, oculto. Entende-se explicita não a falta de suspense ou mistério, e sim a capacidade de mostrar ao leitor o cadáver, podridão, a tortura, a loucura. Medos reais e concretos, ainda que misteriosos. Lovecraft, ao descrever o terror, ou apenas ao sugerir cenas tão terríveis que não poderiam ser descritas, oculta aos olhos do leitor esse pavor absoluto, para o autor, a “atmosfera, não ação, é o grande desiderato da ficção fantástica. Com efeito, uma história de espanto jamais será senão uma pintura viva de certos tipos de estados de espírito humanos”, assim, o terror pode ser sanguinolento, chocante. O horror, indizível assustador.
No entanto, Poe jamais poderia ser lido senão como um mestre do suspense, estando novamente assim as contradições das definições. O horror mostraria ao homem um universo que se esconde, que a imaginação, em momentos inesperados, consegue conceber, e temer. O terror é a incerteza, a angústia de esperar pelo que vem depois do corredor escuro, é o que rege a condução lenta e inexorável ao mundo sombrio. Mas, o terror gera o horror? Ou o horror gera terror? Não são ambos assustadores? Mais que respostas, neste trecho fica a indagação, a pergunta no ar, e a construção do conhecimento debatendo-se entre uma e outra definição. Para esta autora, ainda inconclusa esta dicotomia, sendo, pois, ambos os sentidos interligados de forma intima.
Em temas literários, falar em literatura de terror é sondar o medo, e os temores que rondam o homem. Teme-se ao conhecido, ao sangue que pinga dos jornais, às guerras, à loucura. Teme-se também ao desconhecido, ao exótico, aos mistérios e fenômenos sem explicações, estes, principalmente estes, sempre assustaram.
Do que o homem tem medo? Alturas, engordar, o escuro, adoecer, emagrecer, insetos, solidão, monstros reais ou imaginários, a insanidade, fantasmas, os vivos, os mortos, bandidos, morrer, viver, espíritos, os seus próprios fantasmas, a sua imaginação. Tudo que apavora, que sussurra um fuja imediatamente, ou que paralisa na angústia do horror absoluto é o medo. Esse medo pode ser comum, raro, misterioso, ridículo (aos olhos de quem não o sente, é claro), insano ou cruel.

O que o ser humano é capaz de fazer para enfrentar os seus medos, aliás, onde buscar coragem para enfrentá-los? O que fazer então para não torná-los parte da realidade, para não tomarem a essência de cada ser? A paralisia, a fuga, os sentidos e reações confusos e assustados esperam a resposta. E como nem sempre ela vem, a conseqüência dessa ausência pode ser inimaginável.Se a Literatura questiona, reflete ou revela o homem seus sentidos, amores e dores, também revela os seus medos. E a morte é um dos principais medos que a humanidade enfrenta, é no terror da morte que o gênero terror mais resplandece em suas sombras. Na historia do ser humano, a morte é a aproximação do inexorável, oprimindo os sentidos e sentimentos, pode ser temida, pode ser ignorada, pode ser desejada. Entretanto, mais que a morte, o que vem depois dela parece ser a grande perturbação do homem.
A morte e seus mistérios sempre causaram inquietação. E dessa inquietação, os causos, os sustos, as inesperadas aparições, tudo transforma-se em um instigante gênero, a literatura de terror, de suspense, fantástica, assustadora ou surpreendente.
No conto A mão do macaco, de W. W. Jacobs, a morte e as tentativas de vencê-la acabam gerando um terror infindo, uma mão seca e mumificada, traz consigo o poder de realizar três desejos, mas o preço pode ser terrível.
“o rosto de sua mulher lhe pareceu mudado quando entrou no quarto. Estava pálida e sôfrega, e, para aumentar a sua inquietação, tinha um aspecto sobrenatural. Sentiu medo dela. ‘Ande, faça o pedido’, ela ordenou, com voz forte. Ele hesitou ‘é loucura, uma crueldade. ’ ‘Peça’, a mulher repetiu. Ele ergueu a mão do macaco. “Eu peço que o meu filho viva novamente”
Desse ponto em diante, o que a mão do macaco trouxe à família, somente a leitura do conto pode dizer. No entanto, são clássicas na literatura as tentativas de dobrar a morte, Frankenstein de Mary Shelley, um dos mais complexos, amado, temido e sentido monstro da literatura de terror, revela esse desejo oculto, e as conseqüências desse querer. O romance nos leva à saga do jovem cientista Victor Frankenstein, que constrói em seu laboratório uma criatura, um monstro feito com pedaços de corpos e metais, cadáveres e molas, tentando recriar o ser humano. Quando por fim a criatura vive, horrorizado com o seu feito, o cientista foge, abandonando a sua obra, ou como dizem, o seu filho. Este romance inspirou uma imensidão de obras do gênero em terror, e sempre pode ser considerado atual, pois a morte, e as tentativas de vencê-la não se esgotaram na ciência, tampouco na literatura. E gera medo. O temor da ciência, do desconhecido, do poder sobre a mais invencível das muralhas, a Morte.
Entre tantos conceitos que permeiam a literatura fantástica no gênero terror, é preciso considerar que, na medida em que o texto literário embriaga-se destes temores, não está, como julgam tantos, divulgando, promovendo, instigando ou influenciando a insanidade, a irracionalidade do ser humano. A ferida quando exposta, a chaga sangrando é o alerta, a denuncia, e principalmente, o alívio, o alívio da tensão, do dia, da noite insone, da noite solitária, do não, do sim, do cotidiano esmagador, do que não se explica, do que dói sem nem sempre saber o porquê. Este alívio das tensões é o desabafo, a catarse.
É na literatura dita macabra, em cada página, letras e textos oriundos da mentes sensíveis ao sombrio que o homem pode reencontrar-se consigo mesmo, com os fantasmas que o perseguem, ainda que seus olhos levantem-se inquietos, e até mesmo o silêncio o assuste enquanto lê, a segurança do distanciamento promove o encontro, a busca, o desafio, até mesmo a indiferença de múltiplas emoções.
O medo, quando explorado na literatura, reflete as sensações enfrentadas na vida dita real. A função catártica da literatura é a purificação, o sentimento de alivio, de expurgar a angústia das situações de tensão. O texto literário pode ajudar o indivíduo a conhecer-se e a conhecer a sociedade em que vive. O homem precisa, mais do que nunca, saber ao que teme, e toda a sua complexidade reflete-se nas letras.
Questiona-se, no entanto, se essa exposição constante não o tornaria indiferente, insensível à dor que porventura verá. Será então que o aumento da violência traz insensibilidade? Estamos insensíveis ao horror? O ser humano tornou-se embrutecido ou essa brutalidade sempre esteve ali? O que leva uma pessoa a interessar-se por acidentes, brigas, ou outras cenas mórbidas? Programas e filmes que exploram a violência ganham em audiência, notícias macabras, atos mórbidos seduzem a curiosidade e atenção de toda uma nação, e nem por isso, saem repetindo os atos assustadores que presenciam. Assim, quem não gosta de histórias de terror, alimenta o seu medo em outros campos.
Não há verdade absoluta, tampouco para as perguntas acima, o que nos sensibiliza passa pela historia de vida de qualquer pessoa, e em cada resposta, única e pessoal, pode estar presente o conceito da catarse, no alivio, no reconhecimento de estar a salvo, distante e vivo. Ainda que aterrorizado.
A catarse está no repouso após a febre, e quando não explora o indizível, mas volta para o cruel, talvez ali esteja o desejo de sacudir, despertar o leitor, acordar o homem da indiferença que o toma, pois o medo sufoca, e uma das opções seria tentar afastar-se, separar o que nos causa repulsa é humano e histórico que o desconhecido agride, mas jamais pode-se fugir do medo. A própria sabedoria popular nunca deixou a o suspense se perder, não se deixa as historias de medos perderem-se, e cada ato ou momento de terror ou suspense, permanece lembrando ao homem a sua pequenez. O Futurismo, movimento de vanguarda, mesmo não tratando de literatura de terror, tem esse aspecto de dar a bofetada, de agredir, de sacudir para acordar, e nesse sentido, aproxima-se de algumas histórias cuja crueldade podem ser esse soco, essa bofetada, esse amor ao perigo.
“Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. [...] Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar”.
Em O cobrador, conto de Rubem Fonseca (1979), em uma escrita seca, ácida e urbana, somos convidados a uma mente criminosa e doente de ódio. Nas cidades, a névoa, os becos, as sombras, a solidão, a insanidade, a violência, a dívida de sangue da sociedade, a indiferença e a crueldade são alguns dos elementos que propiciam o ambiente de terror. O terror descarado, angustiado, sangrento, cruel, espirrando sangue e dor no leitor
(...) Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava a queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa”(...) Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho. Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.
Neste mesmo conto de Rubem Fonseca (1979) é a crueldade o principal mover dos fatos, assim como a dor, a angústia da inadaptação, da insanidade, e por fim, de uma estranha missão, do humano animalizado, bestial, como podemos ver em cada ato do cobrador, “Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete.” O conto não trata exatamente do terror convencional, mas sim do horror de uma sociedade inesperada, do ódio, da morte, dos jogos de poder entre razão, emoção e sociedade. A paz aparente de quem cruza a rua, vivendo os seus dias com a efervescente mornidão que o cotidiano impõe, pode, de repente, ver-se frente a um cobrador. Toda tranqüilidade rompida em sangue, dor e asfalto derretido. Assim, enquanto o terror explora o indizível, o que inquieta e oculta-se, o horror sangra, causa repugnância, nojo e pavor.
O terror representa o rompimento com o que era dito normal, a aparente estabilidade interrompida. Em um momento de paz e tranqüilidade não há espaço para o medo, porém, quando essa tranqüilidade se vai, o espaço que antes era calmaria torna-se em segundos uma realidade que aperta e esmaga os sentidos. Assim, a um vulto vislumbrado, a um som que não se explica, o coração acelera, a pele arrepia-se, os instintos gritam silenciosos, eis o medo, eis o terror. Ainda que depois o vulto se descubra em moveis, os ruídos em normalidades de um cotidiano, o medo marcou a presença. Vive-se o medo, lê-se o medo. Nas historias de terror, o medo traduz-se em seres e lugares enigmáticos, seres malignos, fantásticos, espíritos, fantasmas, feiticeiros, bruxos, monstros cuja aparência pode ou não refletir a crueldade de seu intimo.
E em cada local, insurgem-se os velhos castelos, casas abandonadas, catacumbas, florestas, ruínas, casebres, o mar, as montanhas, o inferno. Também os mistérios da ciência, as ousadias dos homens em busca do conhecimento, os seres misteriosos, magia, geralmente, são estes os aspectos básicos da literatura de terror.
A hora do medo é noturna, desamparada, desconhecida, pois em meio às sombras da noite que o feio, o assustador, o espectral revela-se. Assim, não é por acaso que uma grande parte dos contos e histórias de terror têm na noite o seu cenário ideal, a noite misteriosa, sugestiva, silenciosa, solitária, vaga, onde tudo acontece, opõem-se a claridade do dia, da conturbação do ir e vir, das tarefas sempre exigindo atenção. É na noite calada que os sentidos alertas podem ver e ouvir o sombrio. Edgar Alan Poe (1975) um dos mais inquietantes escritores do gênero sombrio, em “O coração denunciador” mostra como poucos como a noite pode ser terrível e assustadora:
“Todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a... Oh! Bem devagarinho! E depois, quando a abertura era suficientemente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. (...) Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. (...) E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... Oh! Bem cautelosamente!... Cautelosamente... Por que a dobradiça rangia... Abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse no olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... Sempre precisamente à meia-noite... (...) E todas as manhãs, sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite...”
Os segundos de espera, os olhos espreitando a réstia de luz, o coração batendo furioso, traduzem um dos momentos mais angustiantes da literatura. E ao amanhecer, a negação, a luz limpando qualquer resquício de uma noite de pavor insano faz da mesma o insano aflorar da loucura, do medo, da crueldade. A razão e a emoção, uma das mais antigas luta dos homens, mostra o poder do medo, pois quando ele vem, a razão desaparece. E o que leva embora assim tão rápido a razão? Um vulto no escuro, ruídos em horas silenciosas, pesadelos, a própria realidade, a morte, a guerra, a solidão. Um ruído na noite, e o terror faz-se absoluto E o velho saltou na cama gritando: "Quem está aí?" (...) ele ainda estava sentado na cama, às escuras (...) seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo mas não fora possível. Dissera a si mesmo; "É só o vento na chaminé” ou "é só um rato andando pelo chão", ou "foi apenas um grilo que cantou um instante só": sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições ainda em “O coração denunciador”, Poe nos leva a acompanhar o pavor de quem teme, sozinho no escuro, mediante um vulto, a uma presença inexplicável, e as justificativas desesperadas em busca de uma explicação.
Mas é no poema O Corvo, (BARROSO, 2000) uma obra prima da composição poética, perfeita combinação entre solidão, lirismo, sombras e medos, que a presença da noite, do inexplicável fascina leitores de todas as épocas, Poe, sobre esse poema, escreveu também “A filosofia da composição”, texto em que mostra passo a passo como surgiu esse poema que marca gerações com sua dor e beleza. Desde a escolha de um primeiro verso que pudesse causar impacto, e que tivesse musicalidade e semântica incomparável, do ambiente noturno, do lirismo e força da palavra escolhida “nevermore” no Brasil traduzida por “nunca mais”, até os últimos segundos do nascimento e criação, árdua criação, de sua mais bela composição poética Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,/ A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,/ E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,/ Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar/. "É alguém — fiquei a murmurar — que bate à porta, devagar;/ Sim, é só isso e nada mais”. Instaura-se assim um ambiente propício, noturno, onde os pensamentos estão prontos para a sugestão, mescla de sonho e realidade, silêncio e solidão, um som quebra a monotonia, e em seguida, as buscas por explicação De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia/ E a sossegá-lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo./Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo./É apenas isso e nada mais e aos poucos, perde-se a razão, o medo, o desejo e a loucura aceita tranquilamente o que o coração temia ou pedia. Impregnado das sugestões da noite, ardendo em saudades de Lenora, destina-se ao eterno nunca mais, nunca mais.
"Profeta!” exclamo. "Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernalPelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais!"
A certeza da eternidade sem a mulher amada, a certeza que a ave respondia ao seu apelo por respostas, tudo se perde em meio às sombras de uma sala onde este corvo não sairá, não sairá nunca mais.
Ainda sobre o ambiente sombrio da noite, em “O travesseiro de penas”, impressionante conto de Horacio Quiroga, temos como personagens um jovem casal, Alicia e Jordán aprendendo a fragilidade de um relacionamento, no cenário, a força de uma casa que parece ter vida, Ela o amava muito (...) Ele, por sua vez, a amava profundamente, sem demonstrá-lo (...) A casa em que viviam influenciava um pouco nos seus estremecimentos os passos encontravam eco na casa toda, como se um longo abandono tivesse sensibilizado sua ressonância” as difíceis emoções de uma moça frágil, a súbita realidade do casamento, e Alicia acaba adoecendo. Mas, neste aparente e cotidiano narrar, esconde-se um sufocante mistério, e a morte parece ser o caminho inexplicável Não demorou muito para Alicia passar a sofrer alucinações, confusas e flutuantes no início, e que desceram depois até o chão. A jovem, de olhos desmesuradamente abertos, não fazia senão olhar para os tapetes que se encontravam a cada lado da cama. Insanidade, sofrimento, uma alma impressionável? Alicia tornava-se a cada dia mais frágil, fraca os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, diante deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia após dia, hora após hora, sem se saber absolutamente por quê, e mais uma vez, a noite, a sugestão do que não se explica, torna este um dos contos fantásticos que fascina, cujos sentidos e interpretações jamais se esgotam, e assim, a cada dia que raiava, temos a jovem Alicia em esperanças de recuperar-se, pois durante o dia, sua doença não avançava, mas de manhã ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia que unicamente à noite a sua vida se fosse em novas asas de sangue. Tinha sempre ao acordar a sensação de sentir-se derrubada na cama com um milhão de quilos por cima. Mas fechemos as portas, e deixemos assim ocultos o marido, os médicos, a criada e a jovem Alicia as voltas com os mistérios de uma noite que sugava a fonte de vida.
Na estreita simbiose entre o terror e o indizível, na incerteza perturbadora desfragmentando o que era dito normal que encontra-se o fundamento básico do gênero terror e os inesperados caminhos do medo. É a força da sugestão! Umberto Eco, no obrigatório prazer de A história da feiúra, revela no terror uma das estéticas do feio, e do fascínio que nos oferece, e através do termo umheimliche, propicia o entendimento de como esse ambiente, esse silêncio repentino, essa quase que imperceptível mudança no ar pode ser mais aterrorizante que a própria aparição de um monstro. No capitulo XI, denominado O inquietante, apresenta ao leitor o conceito desse termo, o que conduz ao medo é o que rompe a aparente naturalidade, a aparente harmonia das coisas, sem que consigamos explicar, tem nesta definição a noção que já circulava na cultura alemã há tempos e Freud havia encontrado num dicionário a definição de Schelling, que reza que umheimliche é tudo que deveria permanecer secreto, escondido e, no entanto, reaflora (...)”. Também podendo ser entendido como estranho, estrangeiro, sinistro, suspeito, desconfortável, horrendo, demoníaco, etc... Reafirma assim a importância da suspeita, da sugestão como mais assustadora que a certeza, e nessa sugestão, nessa criação do ambiente assustador, macabro e inesperado que mora o efeito intimo e surpreendente da boa literatura de terror. Conforme Eco, o que é pior? A certeza de um vampiro, ou a suspeita do vampirismo de alguém? Mais que mostrar, o verdadeiro terror insinua, é o cume, é a sombra, a mancha, é do iceberg a ponta, á noite em vez do dia, é o leve ruído em vez do grito profano, é essa sugestão, essa suspeita que instaura o umheimliche, e deixa oculto o que mais nos apavora, o desconhecido que se o víssemos, não mais resistiríamos.
Tzvetan Todorov, em sua Introdução a Literatura Fantástica, obra de referência quando o interessa é o inquietante mundo do terror, define o fantástico como o espaço da incerteza.
Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros se produz um acontecimento impossível de se explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar para duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. (p. 16)
O terror mostra ao homem um universo que se oculta, que se esconde dos olhos cegos, e revela mundos e seres que a imaginação apenas ousou esboçar em momentos de angústia e sombras. Para Lovecraft, “a ênfase maior deverá ser dada à sugestão sutil - imperceptíveis insinuações ou toques de detalhes associativos, bem selecionados, que expressam nuances de estados de ânimo e constroem uma vaga ilusão da estranha realidade do irreal”, e assim, o espaço no qual o homem vive esconde mistérios, a sordidez, a raiva, a loucura e sentimentos inomináveis. O texto literário, quando tem no horror a sal matéria, corta a carne e expõe a ferida, e, ou aprende-se a lidar com seus fantasmas, ou torna-se o homem apenas personagem de mais uma saga.
Ítalo Calvino, em Se um viajante numa noite de inverno, traduz a íntima relação entre texto e leitor, e tal qual o Leitor, o personagem principal as voltas com a sua função de leitor, nos descaminhos de cada leitura é que se faz o mais instigante convite a leitura: escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado. Deitado de costas, de lado, de bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de balanço, numa espreguiçadeira (...) pode também ficar de cabeça para baixo, em posição de ioga... (1999, p. 11), e é este convite que fazemos agora, venha e comece enfim seu mergulho nos contos fantásticos, verdadeiros retratos do ser humano. A literatura fantástica, no gênero terror, repleta de seres malignos ou apenas incompreendidos que continuarão eternamente a povoar a mente do homem, seguirá em seu caminho de sombras, revelando o oculto a quem quiser, ou tiver coragem, para conhecer. As portas da catacumba estão abertas, ouse, leia e viva.

Referências
BARROSO, Ivo (org). O Corvo e suas traduções. São Paulo: Nova Aguilar, 2000.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de janeiro: Record, 2007.
FONSECA, Rubem. O cobrador. Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979. JACOBS, W. W. A mão do macaco. In:
MANGUEL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
LOVECRAFT, H. P. Notas quanto a escrever ficção fantástica. Tradução de Renato Suttana. Disponível em http://www.arquivors.com/notas.htm. Acesso em 06 de mar 2008.
MANGUEAL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
POE, Edgar Alan. Histórias extraordinárias. Círculo do Livro, 1975. QUIROGA, Horácio. O travesseiro de penas. In:
MANGUEL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

12 de ago. de 2009

Descaminhos Sombrios ganha selo de qualidade

A Câmara dos Tormentos, do escritor Henry Evaristo indicou o blog Descaminhos Sombrios para ganhar o selo de qualidade criado pelo site Gothic Darkness. As regras para os novos indicados são as seguintes:


1) Exibir a imagem do selo "Vale a pena acompanhar esse blog!" que você acabou de ganhar, com o link do Blog de quem indicou e um link do criador do Meme;


2) Escrever as regras em seu blog;


3) Indique no Mínimo 5 blogs e coloque os links de seus indicados no final do post. (O limite máximo de indicações de blogs cada um determina conforme achar conveniente);


4) Avisar a pessoa que você a indicou, deixando um comentário para ela.


5) Conferir se os blogs indicados repassaram o selo e as regras.


6) Responder as perguntas abaixo:





1) Por que resolveu criar o blog?


Blogando, posso registrar idéias, opiniões e experiências textuais diversas, além de poder divulgar estes escritos.


2) O que te dá mais prazer em blogar?


Além do trabalho criativo, conhecer a leitura, os comentários de outras pessoas e a possibilidade de ter um espaço onde expressar minha subjetividade.


3) Qual o assunto que você mais gosta de postar?


Poesias sombrias e contos, principalmente do gênero fantástico.


4) Por que escolheu esse nome para o blog?


A escolha do nome Descaminhos Sombrios revela principalmente o que é escrever para mim, ou seja, um processo nunca linear. Quando comecei a escrever, entendia como descaminhos não a negação, mas sim a multiplicidade de universos e possibilidades, e sombrios principalmente pela temática fantástica.


5) Você costuma visitar outros blogs?


Frequentemente, tanto de temas comuns aos que posto quanto de assuntos variados, ler é um prazer tão grande como escrever.


Lembrando que o objetivo deste selo além de mostrar reconhecimento aos valores dos blogueiros, que a cada dia demonstram empenho por transmitir valores sejam eles culturais, sociais, éticos, pessoais, literários, entre tantos outros valores que cada um possui é também uma forma de interação entre nós, blogueiros!


Segue abaixo a lista dos endereços aos quais eu repassarei o meme. Por definição do criador do selo somente blogs podem ser indicados:


Vale das Sombras


Poesia das Sombras


Fantasia e Terror


Contos Grotescos


Cantos e Contos Escuros


Poemas Góticos


Dezembro 13


10 de ago. de 2009

A noiva da dor

Vagava moribunda
Passos trôpegos
Entre velhas tumbas
A noiva da dor

Tendo por vestes farrapos
Olhos aziagos e tristes traços
A noiva da dor

Pés descalços
Rubros de lama e asco
Sangue negro
De trêmulo carpir

Em cortejo obscuro
Lamentos e murmúrios
Penadas almas
Temendo o porvir

Sentia rançosos remorsos
Amarguras e agruras
Em crucis via
A noiva da dor

Ah, pesadelo insano
Foi num lago profano
Em noite maldita
Eu bem vi a face
Da criatura sombria

Desde então vago insana
Persegue-me o terror
A face carcomida
Da noiva da dor

Na imundície se refletia
O rosto q’eu via?
Era o meu
E a noiva da dor
Sou apenas eu

Tânia Souza

2 de ago. de 2009

O Quadro


O quadro

O barulho da bola estourando se espalhou na sala. Adoro goma de mascar. A tosse sacudiu o peito do velho sentado na poltrona, o peito chiava enquanto eu apenas observava o corpo carcomido pela idade estremecer. Após alguns minutos, a sua mão magra estendeu-se e me chamou: Quantos anos minha filha? A velha pergunta. Vinte, respondi sabendo que meus olhos desmentiriam, mas isso de fato não importava, nunca importa para eles. Mais uma vez me estendeu a mão. Meu chiclete ainda estava doce quando grudei na mesa de mogno ao seu lado e sorri, o sorriso é fundamental para gerar a confiança. Cheguei perto do homem e senti o cheiro dos antibióticos, primeiro a grana vovô... O velho também riu, mas a tosse mais uma vez o sacudiu todo, quando apontou para um envelope sobre a mesa. Peguei sem conferir. A sala estava escura, apenas algumas velas iluminavam o lugar. É bonito aqui, você vive sozinho?, perguntei, enquanto meus saltos plataformas ecoavam no assoalho amadeirado e eu sujava meus dedos nos livros acumulados de poeira. Não te chamei para conversar menina, venha cá, mais uma vez o peito chiou ameaçadoramente. Quanta velharia! Era chegada a hora e, sorrindo, me aproximei do velho. Calma vovô, dei uma risada que perdeu-se nas sombras e nos acessos de tosses que de vez em quando interrompiam o silêncio... Passaram-se algumas horas, na parede, um relógio antigo avisava que a madrugava se anunciava quando fui para os fundos da casa.

Diogo estava parado em frente à parede, um quadro maldito, Christine. O maior tesouro desse cofre é um quadro bizarro... Diogo era bonito, os cabelos levemente grisalhos, o ar de respeito que muitas vezes me salvara. Um advogado decadente, cujos conhecimentos me fizeram a herdeira de milhões. O quadro é realmente bizarro, horripilante seria o termo correto para ele. A primeira vez que senti sua força insana foi quando a moça da galeria veio para avaliação. Ficou parada em frente ao quadro, parecendo hipnotizada, quando me olhou, seus olhos revelavam certo asco, não, não servia para a galeria. A polícia ficou intrigada com a sua morte, mas a presença de duas testemunhas e do exame do corpo revelou que fora apenas acidente, ela tropeçou na dobra do tapete e bateu com a cabeça na mesa, o sangue jorrou ate ser absorvido pelo assoalho amadeirado. Quando os médicos chegaram ela já estava morta. O fato de eu ser apenas uma jovem herdeira, órfã no mundo ajudou a eliminar qualquer suspeitas. Na minha nova situação, o que mais me agrada é o olhar penalizado dos que me cercam. Pobrezinha, sozinha agora. A neta que ele tanto procurou foi encontrada.

Eu? Eu sou a pobre menina rica, a papelada encontrada no cofre pelos advogados quando o velho morreu de um infarto fulminante, revelou que finalmente ele havia encontrado a neta perdida. Pobre homem, noticiaram os jornais, morrera sem conhecer a neta. Pobre menina, dizem de mim, órfã e milionária, disfarçando a inveja no olhar. Sozinha no mundo. Mas não estou só, Diego está comigo, sua devoção me enerva, mas tem sido útil tê-lo a meu lado. O quadro está exposto na sala, por alguma razão pérfida, eu o quis ali, onde posso vê-lo. Há boatos sobre sua origem, os curadores não encontraram registro sobre o pintor. Agora está na nossa casa, evito ficar sozinha com ele, mas constantemente, quando enfim desperto de um longo sonho, me vejo parada perante o quadro, sentindo minhas forças sumirem e só penso em dormir...


...


Ah, horror horror... O quadro é maldito, cada vez mais Christine se distancia de mim. Um quadro bizarro! O maior tesouro do velho era apenas um bizarro quadro, exposto na parte mais escura do cofre, de forma tal escondido que quase não o vi. Mas o que sei eu? Acaso sou critico de arte? Apenas sei que as mais horrendas são as que mais valem e assim devia ser com estes traços mórbidos que algum artista encharcado de alucinógenos pintou numa noite maldita. Ah, se eu soubesse o que hoje sei. Só sei que meus olhos tremeram quando cheguei bem perto daquela coisa. Talvez a loucura já estivesse comigo naquela noite, quando senti os olhos fixos do homem sentado na velha cadeira parecendo sugar meus sentidos. Vai ficar a vida inteira admirando essa coisa? A voz áspera de Christine me despertou. Ah, Christine, por ela eu me perdi para sempre e, se mais uma vez me pedisse, eu me perderia. Estávamos naquela noite, no cofre da mansão dos De Alvarez, escondi meu ciúme quando a vi entrando, mas rezava para todos os santos que fosse a última vez. Vi quando acrescentou mais um envelope no meio dos documentos amarelados, enquanto eu escondia dentro da camisa uma caixa contendo algumas jóias, este foi meu erro maior, nada deveria ter sido tocado, nada deveria ter sido movido. Jamais deveríamos ter ido. Ah, Christine... Temo por sua saúde, por horas a vejo sentada na mesma poltrona onde o velho morreu, os olhos fixos na pintura.


...


Não sou a neta verdadeira. O nome dela era Anna Julia, deve ter morrido naquela pequena casa na fronteira, onde cada copo d’água custava-nos serviços infames, a casa onde conheci sua história, da mãe enlouquecida que fugira da família rica. Um dia, ela dizia, um dia eu verei minha verdadeira família. Quando fiz 16 anos eu fugi, trazendo a certidão de Anna Julia e um nome que nunca tivera. Encontrar o velho patife e convencer Diego a forjar a minha identidade foi fácil. Apenas o velho não queria a neta, não se interessava, por isso eu fui até ele, por isso o matei. E herdei toda a sua fortuna, esta casa decrépita e... O quadro. Na pintura, um homem sorri, escrevendo cartas numa escrivaninha de mogno, sei que a um olhar mais atento o sorriso é na verdade uma careta de dor. Alguns vultos parecem entrar pela janela, junto à neblina. As cores são doentias, um tom escuro, um verde nauseante predomina; não sei, porém sinto meu peito apertar-se quando vejo o quadro, os olhos do homem parecem seguir-nos por todo lado. O testamento diz que não pode ser vendido, a despeito do valor, deve ser conservado ou doado. Mas ninguém o quer. Desde que o vejo escrevendo, sinto uma necessidade incontrolável de também escrever, este caderno serve para registrar minha história, mas temo que seja encontrado, por isso o guardo comigo para onde vou. Diogo também escreve, vejo como se concentra enquanto os olhos parecem vagar pelo escritório.

Os olhos do homem me seguem, Diego riu, dizendo que era remorso, mas jamais conheci o significado dessa palavra, posso sentir quando entro na sala, os olhos enfermiços das criaturas me seguindo, por onde vou eles me perseguem. Mencionei as criaturas? Sim, a neblina da pintura se desvanece a cada dia, revelando seres monstruosos, primeiros foram os olhos, depois, ah depois...



...

Christine gritou por mim esta tarde, sua face estava pálida e me disse que o quadro estava mudando. Olhei horrorizado e o que antes eram apenas névoas ganharam contornos horripilantes, bestiais, uma massa disforme onde homens e feras tomam formas nas brumas, contorcendo-se em dor e angústia, lançando-nos olhares ameaçadores. Nunca tive fé, mas se há um Deus, clamei por ele vendo aquela monstruosidade. Temo estar sendo influenciado por Christine, seria este um plano para me enlouquecer? No entanto, vejo que está bastante perturbada a minha menina. Gritou para que fosse embora e a deixasse. Não quer mais sair e sinto o cheiro de remédiosna sua pele, entretanto, ela nega que os esteja usando, ao contrário, constantemente me acusa de estar viciado em antibióticos. Dois meses após a primeira, tivemos a segunda morte diante do quadro, a copeira sofreu um ataque epilético enquanto limpava a sala, da queda fulminante não mais se levantou, os contornos do quadro tornaram-se mais vividos, os rostos mais definidos, bestas feras... No entanto, Christine não deseja desfazer-se da obra. Sente um estranho prazer em fitar a pintura obscena.



...


Quantos anos minha filha? A voz ecoa e o chiado insuportável parece invadir tudo, não suporto mais os seus olhos cravados em mim. Quantos anos minha filha?, e o cheiro do antibiótico inundou a casa enquanto ouço seu peito miserável chiando... Por onde vou, os olhos malditos me seguem enquanto os monstros entram pela janela e gritam, me amaldiçoando. O quadro, o maldito quadro. A marchand disse que é apenas uma técnica, ilusão de ótica, mas eu sei que as imagens se contorcem e se fundem de forma desesperadora, os gemidos não me deixam dormir e os olhos das criaturas me seguem. Sinto o cheiro dos remédios misturados a uma podridão inominável. Diogo me olha e sei que esconde algo, o quadro me disse, sussurrou para mim enquanto tossia, que eu deveria vigiar os passos do meu amante. Hoje, quando ele saiu, fui ao seu quarto. Encontrei as jóias, a sombra do velho me guiou até elas, escondidas embaixo do colchão. Ah, tolo, tentando me enganar. Eu ri quando seu sangue espalhou-se pelo assoalho de madeira depois sumiu escorrendo pela parede ate a sala onde pendurei o quadro maldito. Chorei então, pois finalmente estava sozinha no meu pesadelo. Posso sentir os olhos de Diogo me seguindo pela casa, às vezes com ódio, às vezes com amor. Juro que o vi chorar certa noite, o corpo retorcendo-se em meio aos outros que entram pela janela do maldito quadro. Todas as noites eles chegam, chamando meu nome, dizendo palavras obscenas que ouvi nos tempos de outrora. Amaldiçoando meus dias pela eternidade.

É noite, o vento sacode as cortinas e acordo mais uma vez com o chiado do peito do velho, ele sussurra no meu ouvido e pede por sangue, sinto o corpo febril e já não posso dormir, meus dias tem sido essa velha poltrona, sinto a presença de Diogo no quadro, posso reconhecer a avaliadora do museu, a velha copeira, me olham angustiados em meio às bestas que aumentam em número e ferocidade a cada dia que passa. Devo apenas obedecer... A faca que encontrei na cozinha servirá aos meus propósitos, tudo que quero é poder dormir sem o cheiro nauseante dos medicamentos nem o chiado do peito enfermo ameaçando sufocar-me no leito.

...

O que leio nestas folhas coladas a minha frente e a lembrança do que vi ameaçam toda lógica, escrevo o que consigo entender das letras tremidas e evito pensar no que meus olhos testemunharam. Os corpos estavam espalhados pela casa, nem as crianças foram poupadas, muitos morreram dormindo, outros, encontrados nas posições mais estranhas. Não havia sangue, apenas o horror da morte.

A beleza da herdeira era conhecida por todos, no entanto, passara os últimos meses em reclusão total, até que a insanidade tornara-se incontrolável a ponto de levá-la ao assassinato de todos os empregados. Estava encolhida na velha poltrona, murmurando que eram ordens do quadro, que o velho a obrigava. Foi recolhida a um sanatório, onde uma camisa de força a segurava. Sempre que despertava, gritava por socorro, pedindo que o velho fosse embora. O caso fora arquivado até que seu sumiço repentino me levara de volta a velha mansão. As folhas espalhadas pela casa foram recolhidas por mim, colei todas elas e o que li revelou-me uma trama cruel e a insanidade que trouxera aos moradores. Não entendo como não foram encontradas antes nem penso nisso, apenas registro que leio, sinto uma necessidade absurda de transcrever estes acontecimentos inimagináveis. Aqui, nesta poltrona onde ela passou seus últimos dias, leio e transcrevo o registro de sua insanidade.

Entendo que a pintura os perturbassem, vi enfim o quadro a que se referem as folhas do diário quando abri a porta e um arrepio de horror tomou meu corpo, não pude conter um arquejo. Tal qual uma pintura em trompe l’oeil, as imagens parecem saltar e sair do quadro como num teto profano, uma massa de carnes, homens e feras em um escárnio de dor e ódio. Em meio a eles, vislumbro o rosto de Christine, a mais bela herdeira que esta cidade já vira, entrelaçada ao corpo de Diogo, juntos e amaldiçoados... Seus olhos me prendem e eu apenas escrevo...

...


Mais uma morte assolara a velha mansão dos De Álvares, desta vez, um jovem repórter que invadira o local durante a noite foi encontrado dias depois, enforcado na velha sala, a poltrona caída, os olhos arregalados e fixos na pintura que dominava o ambiente. Folhas de uma reportagem insana estavam espalhadas pela casa. Não há justificativas para seu suicídio, e as garatujas encontradas não esclarecem o assunto. Mais uma vez, os portões foram lacrados...

...



Nota da autora: este conto é uma obra de ficção, não traduz minhas crenças ou opiniões; qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas reais é mera coincidência.

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2º Exercício de Elaboração de Contos Fantásticos no Fórum da Câmara dos Tormentos. Composição de contos inspirados por imagem.


...

O Corredor

O corredor
TERROR
Escrito por Tânia de Souza
No outdoor, enquanto o cowboy fumava, as luzes de néon invadiram as cortinas vulgares. Na penumbra do quarto abafadiço, um ventilador girava suas engrenagens corroídas quando Paulo moveu-se na cama, murmurando, preso aos sonhos. O suor escorria-lhe pelo pescoço. Ainda adormecido, passou a mão na pele pegajosa. A noite estivera abafada, e o ventilador, em sua ladainha espalhava a poeira que os hotéis guardam com o tempo. A música vinda da rua era dolorosamente bela: — For you I'm bleeding... For you, for you…
Fora a canção que o despertara. Ainda naquele estado de sonolência, as mãos procuraram o pequeno celular embaixo do travesseiro. Abriu os olhos e viu no painel azulado que ainda faltavam quinze minutos para às quatro horas. Mais uma vez despertaria e seguiria viagem, deixando aquele hotel. Suspirou, ah como odiava acordar antes do despertador, roubado em quinze minutos do seu sono. Virando a cabeça para o lado, olhos fechados, empurrou os lençóis para longe, evitando pensar no dia que logo se iniciaria. Tentou não sentir a boca ácida, guardando resquícios de whisky , enjoado com o cheiro da maquiagem e do perfume barato de alguma prostituta que lhe fizera companhia parte da noite. Vencendo a náusea, cobriu a cabeça para fugir da luz vinda da janela. A canção havia desaparecido apesar da melodia ainda ecoar.
Havia sonhado, a imagem ainda clara em sua mente: asas de borboletas, lábios que balbuciavam palavras que não conseguira entender. Na modorra entre o sono e a realidade, sabia que voltaria a sonhar com a menina, segurando algo não identificado e murmurando.
A cabeça moveu-se no travesseiro úmido, os sentidos entorpecidos, novamente adormeceu. Viu-se em um corredor escuro, cercado por quartos em ruínas e paredes grafitadas. Seus passos arrastavam-se no chão escorregadio, enquanto uma água fétida surgia fininha na parede ao lado, cores embaçadas da madrugada envolviam a tudo.
Cada penugem do seu corpo arrepiou-se quando a canção cresceu, entrecortando a melodia, ouviu seu nome em sussurros. Pressentiu nas sombras um vulto passando. Virou-se devagar, indeciso entre correr e o medo que o paralisava, no entanto, não havia nada, nada além uma porta entreaberta, de onde vinha um soluço, um pequeno lamento. Paulo empurrou a porta devagar e de repente, todos os seus membros amorteceram-se: era ela!
Estava encostada na parede, em um canto imundo, cercada por teias de aranhas, quando ele a viu. Bianca, os cabelos dourados em duas tranças e a fita solta pelos ombros. A velha angústia o envolveu, o ar faltou quando a dor tornou-se física. Sem perceber, uma lágrima começou a cair dos seus olhos. Balbuciou o nome que há muito não ousava pronunciar e os olhos amendoados ergueram-se, fitando-o sem parecer reconhecê-lo, os lábios cheios e rosados abriram-se, implorando:
— Socorro, por favor...
Paulo via os lábios moverem-se em um pedido mudo, ouvido-a dentro de si quando ela apontou com os braços finos o outro canto da sala. Ali, bem a frente de Bianca, da sua Bianca, um gigantesco escorpião retorcia-se. Feroz, a pele estranhamente branca, o animal possuía no ferrão que agitava-se ameaçador, uma ponta vermelha. O ferrão ia e vinha em direção a moça, cada vez mais perto. Paulo olhou ao seu redor, nas mãos viu-se de repente com um facão. Ele avançou aço contra carne, quanto mais fortes eram os golpes, mais o peçonhento se debatia, os olhos arregalados e azuis explodindo em sangue. As sombras cresceram por todo lado levadas ao som dos gemidos finos que subiam pelo ar, até que a carcaça albina jazia derrotada. Levantou os olhos, entretanto ela já não estava ali, apenas a ponta do vestido branco arrastando-se pela porta. Desesperado, ele a seguiu pelo corredor enlodado, quando enfim os corredores bifurcaram-se, ele a viu, esperando-lhe. As tranças douradas, a fita azul, a renda suave enfeitando a borda do vestido, como da primeira vez que a vira. Os mesmos olhos amendoados fitando-o, em expectativa. Ela agora em seus braços, a boca na sua, a pele, o cheiro que nunca o havia abandonado expandiu-se quando os braços o envolveram. Paulo tremia enquanto seu corpo a prendia na parede, explodindo de ternura e paixão, tocando-a por cima do algodão, sentindo o coração batendo sob o seu peito, ele chorou. Nos corredores sombrios, as notas espalhavam-se: — And every new dawn... ends in bitterness ...
O ventilador movia-se lentamente no quarto. As hélices foram parando, parando até que o silêncio sufocou as horas e Paulo acordou. Os olhos estavam úmidos. Os soluços irromperam no peito do homem. Abraçou o próprio corpo, sentindo o cheiro da pele amada, depois de tanto tempo, porque sua mente a trouxera de volta? A velha dor... amarga dor. O calor crescia. Novamente procurou o pequeno celular, os números diziam claramente: 3horas e 45 minutos. Um pesadelo, um maldito sonho. A cabeça repousou no travesseiro, aquela noite havia sido longa, sentia sede, os lábios ressecados. E ela. Ela impregnando-se em sua alma. Fechou lentamente os olhos, mais quinze minutos, na esperança de tê-la um pouco mais, forçou o corpo a descansar novamente. Foi se deixando embalar pelo sono até que o sonho voltasse. Estava novamente no corredor escuro. Na parede, recortes de jornais manchados de sangue exibiam letras turvas que o papel embolorado não permitia ler.
Os sussurros agora chamavam por seu nome, enquanto ele corria, tocava as paredes do corredor escuro que pulsavam sob suas mãos. Ouvia os passos leves, revendo o campo onde ele e Bianca haviam corrido pela primeira vez, sonhado tantos sonhos, dançando na varanda, as faces tocando-se, ah, era a mesma melodia.
Uma porta abriu-se ao seu lado. O mesmo lamento de antes veio de uma sala em ruínas. A menina com asas de borboleta estendeu-lhe os braços, murmurando palavras mudas, oferecia-lhe algo que não conseguia identificar. Quando um ruído feroz quebrou a mesa de vidro, ela afastou-se, entristecida. Um riso áspero cortou a sala e no outro canto, Bianca chamava por ele, implorando por socorro. O escorpião branco erguia-se, porém Paulo sentia seus pés presos no lodo imundo da sala. A agulha rubra tocou a face pálida. Bianca gemeu quando o ferrão vermelho perfurou-lhe o peito, a ponta fina dilacerando a renda branca, rasgando a carne e o tecido até um rio rubro escorrer pelo chão, o ventre dilacerado e, horror dos horrores, um bebe chorava entre as vísceras. Paulo gritou, gritou, gritou, até acordar com o próprio grito, as imagens congelando-o na cama, o ódio tomando-lhe o peito. Viu-se preso na velha angústia sem conseguir para de gritar, revendo o casamento, a família, o bolo, a valsa, as imagens dançavam em sua mente: Bianca sorrindo, Bianca no jardim, Bianca voltando do médico, Bianca caída no chão da sala, sangue por todo lugar e desde então, uma viagem eterna por hotéis, adormecendo nos braços de putas decadentes, embriagando-se com whisky barato, fugindo da dor.
Ao perceber que ainda gritava, Paulo tentou levantar-se, mas a dor na cabeça o impediu. O celular caído no chão marcava ainda 3horas e 45 minutos. Olhou para o teto tendo a impressão de que este estava cada vez mais perto. Sequioso, sorveu um resto de água mineral da garrafa caída sobre o tapete, para não ver as sombras que tanto temia fechou os olhos, vendo-se outra vez no corredor estreito, os gritos de Bianca chamando por ele, jurando-lhe amor, pedindo, implorando por socorro, enquanto o escorpião albino balançava ferozmente o ferrão vermelho, os olhos dela nos dele, tantas palavras não ditas, a velha dor.
Via-se de novo no sonho, consciente, porém preso, hipnotizado entre sonho e a realidade, não podia reagir ao escorpião branco que foi se aproximando. Paulo debatia-se, os braços amarrados, sabendo sem razão que enquanto gritasse estaria salvo. Foi quando, em um canto, percebeu a menina-borboleta, entristecida, estendendo-lhe os braços. Em suas mãos, reconheceu um antigo espelho. Quando Paulo viu-se refletido, o ar faltou-lhe, e num arquejo... era ele no espelho! Era ele era o escorpião branco! Era ele a fera. O ferrão que dilacerou o ventre amado, julgando ferir uma semente que não aceitava como sua, partiu dele! No rosto da menina que o fitava, reconheceu seus próprios olhos azuis e as tranças douradas de Bianca. Finalmente entendia o que ela murmurara, em monossilábicos gemidos:
— Por quê, meu pai? Por quê?
*************
Eram oito horas da manhã, quinta-feira cinzenta, quando os jornais noticiavam a execução por injeção letal. O condenado havia cometido o crime de uxoricídio. A esposa estava grávida e por milagre a criança sobrevivera. Quatorze anos passados em silêncio aterrorizante, vários laudos depois, enfim a sentença se cumpriria. Na pequena sala, uma jovem de cabelos trançados observava, ao seu lado, um relógio parado marcava 3 horas e 45 minutos. Com olhos marejados, viu enfim a injeção letal perfurar a tatuagem de um escorpião no braço do pai. Para ela... era o fim.
*************
No velho quarto de hotel, as luzes de neon apagaram-se quando a garota-borboleta partiu. Paulo ficou sozinho no velho corredor, ouvindo a melodia dentro de si, “for you, for you i'm bleeding” e ao longe, a voz suave de Bianca pedindo por ele. Sentindo às suas costas o escorpião branco rastejar nas sombras da eternidade, seus passos seguiram pelo corredor. Para ele, estava apenas começando.
For You I'm Bleeding - Wolfsheim


O Herdeiro




O herdeiro



E ele disse: “Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.
Mateus 4:9


Do alto de sua torre, Ultor observava o reino, sua herança maldita a cobrir-se de fumaça e trevas. A peste havia chegado e com ela, cumprir-se-ia enfim a promessa feita há vinte anos. Viera através de Ana de Bogna, cozinheira cujo destino sempre fora servir, naquela noite, desviara-se dos guardas para encontrar-se com o namorado num canto escuro de um dos jardins, mas jamais chegara ao encontro, o corpo fora encontrado coberto de pústulas que estouravam e formava úlceras; delirante pela febre, ela murmurava, "não, não deixem o herdeiro me pegar, não, os seus dentes..." A ladinha repetiu-se até decidirem averiguar. Esgueirando-se para a torre, tomados de medo e raiva, os homens foram recebidos com um olhar calmo por aquele ser assombroso. As ratazanas guinchavam desesperadamente, mas as mãos finas tocaram o pelo asqueroso e elas calaram-se; pela primeira vez, alguém ouvia a voz de Ultor. "Está feito", ele disse e mais uma vez, calou-se. A partir deste dia o caos e a morte chegaram ao reino, a peste espalhara-se e já não havia lugar para enterrar os mortos, que iam sendo queimados para evitar maiores contágios. O céu tingiu-se de vermelho e um cheiro ocre espalhou-se.

Nascimento


As rodas da carruagem saltavam sobre as ruas e feriam a neblina da cidade, levando para longe a prova viva de um dos maiores horrores que o homem já cometera. Na janela mais alta de seu palacete, o Conde Lars Ulrich de Rouam fechou as cortinas e voltou-se para sua nova existência, enquanto a carruagem seguia veloz em seu caminho para o interior. Angeline, sua filha, jamais seria vista novamente. A enfermidade súbita a afastara dos poucos amigos, os criados mais próximos jamais saberiam explicar o que acontecera. "Está feito", disse ao pequeno homem que o observava nas sombras.

Após horas de viagem sacudindo-se pela estrada cheia de percalços, a roda de madeira não aguentou a velocidade e quebrou-se, a carruagem virou-se, despencando em meios a arbustos e um barranco enlameado. Assim, os primeiros gritos da jovem mãe foram anunciados. O bebê chegara cedo demais. "Ayudame Maria", arquejava Angeline, ayudame! Entretanto, a espanhola que fora sua ama desde que dera os primeiros vagidos, tinha o pescoço estranhamente retorcido e já não poderia responder. Estava morta. Gotas de suor e tremores sacudiram o corpo enfraquecido, entanto não havia tempo para lágrimas ou pesar. A moça gritou por horas, agarrada ao braço do velho cocheiro, confidenciando-lhe em delírios sobre um homem que derramara sangue sobre seu corpo e de mãos descarnadas que a ameaçavam. O cocheiro benzeu-se quando viu as névoas que os cobriam repentinamente e um arrepio o percorreu quando a menina cravou as unhas em sua pele, implorando por ajuda, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." Finalmente um lamento agudo se fez ouvir, com o apoio do rude homem, o pequeno nascera. Desfalecida pela dor, a jovem mãe não viu quando recebeu o bebê enrolado em seus braços. Pedro de Aguirre era um homem prático, a roda estava imprestável, quiçá todo o veículo. Tais condições, somadas à aparência doentia da moça e do recém nascido indicavam como única solução a busca imediata por ajuda. Partiu deixando a pequena família encostada no que sobrara da carruagem. Em meio a este local desconhecido e solitário, nascia o único filho de Angeline de Rouan. O filho da vergonha e da dor cresceria sem suas benções e sem o carinho de mãe. A morte chegara com a vida.

Não se sabe ao certo quantos dias Pedro caminhou para conseguir a ajuda que necessitara, quando os servos o encontraram, estava ferido e delirante, balbuciando sobre uma floresta maldita onde a menina os aguardava com o neto do conde. Ao longe ouviram os lamentos agudos, como de um gato agonizante clamando por socorro. O corpo da jovem mãe já estava em decomposição, mas seus braços seguiam firmemente agarrados a trouxa em farrapos que lançava agudos bramidos pelo ar. O que viram aqueles homens jamais esqueceriam: o rosto desfigurado da moça apresentava-se lacerado, o cheiro da morte, mescla de sangue coagulado, enxofre e pruridos diversos empesteava o ar, espalhando-se quando a trouxa foi retirada dos braços endurecidos. Um enterro as pressas, o asco e a repugnância que o cheiro do bebê despertou marcariam seu destino; as pessoas sempre estariam afastadas do herdeiro do conde.

Não encontraram ama para a criança. Os poucos relatos que resistiram ao tempo e chegaram posteriormente à corte, contavam que o povo olhava com desconfiança para aquele que colhera a vida da mãe ao nascer, pois além da aparência sombria, o cheiro da morte permanecera com ele. O filho da jovem beldade não herdara sua beleza, seus traços eram degenerados e repugnantes, principalmente os olhos claros assustavam as amas, que temiam ter o leite seco para os próprios filhos, por isso foi amamentado com leite de cabra, a pele era fria e endurecida. Por ser o herdeiro do conde, em seus primeiros anos recebeu o tratamento que lhe permitiu sobreviver na zona rural. As poucas crianças o evitavam, o avô jamais o procurara, mas era saudável e crescia, apesar do pequeno horror que sentiam os que o encontravam inesperadamente, acostumaram-se a sua presença no pequeno feudo, recebiam raras visitas e aceitavam calados o destino de servir sem questionar.

A corte

O salão dourado reunia a nata da nobreza, que observava o homem curvado fazendo malabarismos, o olhar malicioso arrancando risadas exageradas dos cortesãos. O corpo abandonado no trono, coberto por jóias riquíssimas, e sendo acariciado por jovens beldades, o Rei Lars Ulrich de Rouam observava todos com olhos semicerrados quando um homem aflito adentrou ao salão dourado. O que dissera ao rei não se sabe, mas imediatamente o rosto apresentou a dureza que lhe era característica, a festa estava acabada.

Numa saleta, o garoto aguardava, observado com atenção por dois soldados e um servo rústico e de aspecto debilitado. Finalmente conheceria o avó que o mandara para tão distante. Aos dez anos, sua aparência tornara-se ainda mais assustadora, a carne da face parecia solta sobre os ossos, apesar dos músculos fortalecidos, veias saltavam arroxeadas por detrás da pele esverdeada e uma corcova se anunciava. Mas o primeiro contato do rei com Ultor não se dera pelo olhar, fora o cheiro nauseabundo que o encontrara ainda no corredor, mistura de madeiras apodrecidas e úmidas, gengivas estragadas pelo escorbuto e o ranço das feridas mais infectadas não poderiam descrever o cheiro que espalhava-se pelo castelo. "O cheiro do demônio", murmurou o rei, ao entrar na pequena sala. Todos ajoelharam-se, menos o jovem que desconhecia qualquer regra e portava-se mesmo como um pequeno selvagem. As poucas crônicas da época dizem apenas que o campônio fora duramente castigado por trazê-lo ate ali, mas não houvera surpresa nos olhos do rei, apenas curiosidade e um leve tremor de lábios ao ver os olhos claros fitando-o. O feudo fora atacado na noite em que o garoto faria dez anos. Dizimados os aldeões e os simplórios senhores feudais que o abrigavam, a morte mais uma vez se desviara dele. Um dos poucos sobreviventes recebera a incumbência de levá-lo ate o reino, para que fosse decidido o seu destino. E assim foi feito.

Aquele era um reino rico e opulento, as colunas erguiam-se majestosas e catedrais agulhadas ambicionavam o céu. Pois em meio aquelas torres pontiagudas e imponentes, o herdeiro encontraria sua morada. Uma porta selada e a altura incomensurável o manteriam afastado dos olhares curiosos. Logo, os aposentos ao seu redor foram abandonados, pois o cheiro que o rodeava contaminava a todos. Sempre oculto nas sombras, ainda mais que no antigo feudo, fora duramente castigado no dia que ousara sair de sua morada. Não chorava nem falava, mas desenhava com avidez, pequenos carvões tornavam os olhos ainda mais brilhantes e durante horas dedicava-se a escrever estranhos hieróglifos nas paredes, entoando arremedos de canções insanas e grunhidos; emaranhadas, suas escritas confundiam-se e espalhavam-se até alturas inexplicáveis. Os servos temiam-no, desde sua chegada, ratazanas cresciam e infestavam o castelo de maneira anormal, mais de uma vez, fora surpreendido cercado por elas, em guinchos, parecendo comunicar-se com os animais. O primeiro acidente aconteceu com o jovem Thiago, ao levar a comida ao herdeiro – assim chamado as escondidas pelos criados – ao ser surpreendido guinchando com suas mascotes, lhe dirigira um olhar tão feroz que o menino voltara correndo para a cozinha, recusando-se a seguir as ordens para que voltasse. Não se sabe como, mas naquela noite, ardeu em febres, delírios e na manhã seguinte, o corpo sem vida apresentava lacerações como se pequenos e pontiagudos dentes o tivessem ferido. Todo sangue fora retirado do seu corpo franzino.

A cobrança

O rei seguia indiferente, acumulando riquezas e amantes, de suas guerras era sempre o vencedor, um império estava se formando e sob a égide do castigo e da virulência, recebia obediência cega. No entanto, entre as gentes menores do reino, corriam boatos. Outrora havia no reino um rei justo e pacífico, cuja morte inesperada, assim como dos três sucessores imediatos despertara desconfianças, mas nada fora provado e assim Lars Ulrich de Rouam tornara-se o novo e tirano rei. Os murmúrios sobre a súbita ascensão cresciam junto com a insatisfação do povo e dos nobres, estes, manipuladores de segredos, encontraram em um antigo médico da corte caído em desgraça, elementos para vingar-se do novo rei. E assim a historia deste estranho personagem começava a esclarecer-se, à medida que a repugnância em relação a ele crescia.

Em troca de algumas moedas de ouro, entregara este médico um pequeno diário pertencente ao seu falecido pai, servo das sombras que fizera junto ao rei, um pacto demoníaco. Ultor, por toda repugnância que despertara, era de fato um herdeiro, mas não um príncipe herdeiro da terra, era um herdeiro do inferno, era um maldito, o filho do incesto e da decadência, a prova viva da maldade e da ambição, o herdeiro do demônio, cuja primeira vítima fora aquela Angeline morta aos 14 anos, seviciada pelo pai em uma missa negra. Entregue a estranhos e profanos rituais, fora escolhida pelo parricida para abrigar o corpo daquele que ficaria conhecido por todos como o herdeiro. Em troca da pureza de sua filha, tornara-se o novo rei, com poderes grandiosos, não oferecera somente a sua alma e de todos do seu reino para quando o senhor das trevas fosse cobrar o preço, oferecera o ventre de sua única filha para abrigar aquele que seria o primeiro de muitos filhos do demônio em terra, seres tão malignos e bestiais que trariam consigo a doença nas unhas e nos dentes, seres que carregariam consigo todos os odores do inferno e teriam como missão colher as almas para o reino de seu verdadeiro pai, um demônio tão antigo quando os elementos tomara o corpo de Lars Ulrich de Rouam para plantar a semente do mal naquela noite nefasta. E desta semente nascera Ultor, cujos traços degenerados, os dentes apodrecidos e pontiagudos adornados por uma carne flácida e pútrida completavam o quadro terrificante. Horrendo e forte, todas as noites escalava as complexas torres para ter acesso a um pequeno balcão, onde, cercado por ratazanas, observava a vida no reino.

No entanto, quando o segredo foi descoberto, trouxera com ele o preço acertado, de nada adiantara aos inimigos do rei conhecer tão hedionda verdade, pois em dez dias, o horror corporificara-se, lamentos e mortes não poupavam ninguém; a fumaça espalhava o constante odor da morte. Era chegada a hora da cobrança. O fim de Rei Lars Ulrich de Rouam fora inesperado, ao ver a decadência do reino e de seus súditos, lembrou-se da promessa feita ao demônio. Ele então não acolhera e criara o filho da besta, aquele nascido de sua própria filha? Seria mesmo este o fim de seu reinado, não fora ele um servo fiel? Com estes pensamentos, seguiu a procura de Ultor, mas ao entrar na cela úmida, escutou apenas um grunhido; virou e deparou-se com uma enorme ratazana, os olhinhos brilhando no escuro, enfurecido, chutou o animal imundo, mas sentiu nas pernas que algo o roçava, era outra, ainda maior; gritou pelos criados, mas seguindo suas próprias ordens, aqueles se mantinham afastados dali durante a noite. O rei caminhou em direção à porta quando seus pés tropeçaram em outra ratazana, os guinchos aumentaram quando caiu pesadamente ao solo e foi lentamente cercado pelos animais. Exibindo dentes agudos e ferozes, avançaram sobre ele, "os ratos, estão por toda parte, os ratos, os dentes... estão me devorando..." seus gritos percorreram inutilmente os corredores e salas vazias. O reino dourado chegava ao fim ao som de guinchos e dentes mastigando com ferocidade.

Do alto de sua torre, Ultor sorriu, virando levemente o pescoço para aquele que havia sido seu progenitor terreno, depois voltou a observar o reino. As agulhas enegrecidas pela fumaça apontavam para o alto como se pedissem por socorro, mas a fumaça e as trevas cobririam a luz por muito tempo. O novo reino se estabeleceria por séculos.



Fim?


Por Tânia Souza



1º Exercício de Elaboração de Contos Fantásticos no Fórum da Câmara dos Tormentos. Composição de contos inspirados por imagem.