O quadro
O barulho da bola estourando se espalhou na sala. Adoro goma de mascar. A tosse sacudiu o peito do velho sentado na poltrona, o peito chiava enquanto eu apenas observava o corpo carcomido pela idade estremecer. Após alguns minutos, a sua mão magra estendeu-se e me chamou: Quantos anos minha filha? A velha pergunta. Vinte, respondi sabendo que meus olhos desmentiriam, mas isso de fato não importava, nunca importa para eles. Mais uma vez me estendeu a mão. Meu chiclete ainda estava doce quando grudei na mesa de mogno ao seu lado e sorri, o sorriso é fundamental para gerar a confiança. Cheguei perto do homem e senti o cheiro dos antibióticos, primeiro a grana vovô... O velho também riu, mas a tosse mais uma vez o sacudiu todo, quando apontou para um envelope sobre a mesa. Peguei sem conferir. A sala estava escura, apenas algumas velas iluminavam o lugar. É bonito aqui, você vive sozinho?, perguntei, enquanto meus saltos plataformas ecoavam no assoalho amadeirado e eu sujava meus dedos nos livros acumulados de poeira. Não te chamei para conversar menina, venha cá, mais uma vez o peito chiou ameaçadoramente. Quanta velharia! Era chegada a hora e, sorrindo, me aproximei do velho. Calma vovô, dei uma risada que perdeu-se nas sombras e nos acessos de tosses que de vez em quando interrompiam o silêncio... Passaram-se algumas horas, na parede, um relógio antigo avisava que a madrugava se anunciava quando fui para os fundos da casa. Diogo estava parado em frente à parede, um quadro maldito, Christine. O maior tesouro desse cofre é um quadro bizarro... Diogo era bonito, os cabelos levemente grisalhos, o ar de respeito que muitas vezes me salvara. Um advogado decadente, cujos conhecimentos me fizeram a herdeira de milhões. O quadro é realmente bizarro, horripilante seria o termo correto para ele. A primeira vez que senti sua força insana foi quando a moça da galeria veio para avaliação. Ficou parada em frente ao quadro, parecendo hipnotizada, quando me olhou, seus olhos revelavam certo asco, não, não servia para a galeria. A polícia ficou intrigada com a sua morte, mas a presença de duas testemunhas e do exame do corpo revelou que fora apenas acidente, ela tropeçou na dobra do tapete e bateu com a cabeça na mesa, o sangue jorrou ate ser absorvido pelo assoalho amadeirado. Quando os médicos chegaram ela já estava morta. O fato de eu ser apenas uma jovem herdeira, órfã no mundo ajudou a eliminar qualquer suspeitas. Na minha nova situação, o que mais me agrada é o olhar penalizado dos que me cercam. Pobrezinha, sozinha agora. A neta que ele tanto procurou foi encontrada.
Eu? Eu sou a pobre menina rica, a papelada encontrada no cofre pelos advogados quando o velho morreu de um infarto fulminante, revelou que finalmente ele havia encontrado a neta perdida. Pobre homem, noticiaram os jornais, morrera sem conhecer a neta. Pobre menina, dizem de mim, órfã e milionária, disfarçando a inveja no olhar. Sozinha no mundo. Mas não estou só, Diego está comigo, sua devoção me enerva, mas tem sido útil tê-lo a meu lado. O quadro está exposto na sala, por alguma razão pérfida, eu o quis ali, onde posso vê-lo. Há boatos sobre sua origem, os curadores não encontraram registro sobre o pintor. Agora está na nossa casa, evito ficar sozinha com ele, mas constantemente, quando enfim desperto de um longo sonho, me vejo parada perante o quadro, sentindo minhas forças sumirem e só penso em dormir...
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Ah, horror horror... O quadro é maldito, cada vez mais Christine se distancia de mim. Um quadro bizarro! O maior tesouro do velho era apenas um bizarro quadro, exposto na parte mais escura do cofre, de forma tal escondido que quase não o vi. Mas o que sei eu? Acaso sou critico de arte? Apenas sei que as mais horrendas são as que mais valem e assim devia ser com estes traços mórbidos que algum artista encharcado de alucinógenos pintou numa noite maldita. Ah, se eu soubesse o que hoje sei. Só sei que meus olhos tremeram quando cheguei bem perto daquela coisa. Talvez a loucura já estivesse comigo naquela noite, quando senti os olhos fixos do homem sentado na velha cadeira parecendo sugar meus sentidos. Vai ficar a vida inteira admirando essa coisa? A voz áspera de Christine me despertou. Ah, Christine, por ela eu me perdi para sempre e, se mais uma vez me pedisse, eu me perderia. Estávamos naquela noite, no cofre da mansão dos De Alvarez, escondi meu ciúme quando a vi entrando, mas rezava para todos os santos que fosse a última vez. Vi quando acrescentou mais um envelope no meio dos documentos amarelados, enquanto eu escondia dentro da camisa uma caixa contendo algumas jóias, este foi meu erro maior, nada deveria ter sido tocado, nada deveria ter sido movido. Jamais deveríamos ter ido. Ah, Christine... Temo por sua saúde, por horas a vejo sentada na mesma poltrona onde o velho morreu, os olhos fixos na pintura.
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Não sou a neta verdadeira. O nome dela era Anna Julia, deve ter morrido naquela pequena casa na fronteira, onde cada copo d’água custava-nos serviços infames, a casa onde conheci sua história, da mãe enlouquecida que fugira da família rica. Um dia, ela dizia, um dia eu verei minha verdadeira família. Quando fiz 16 anos eu fugi, trazendo a certidão de Anna Julia e um nome que nunca tivera. Encontrar o velho patife e convencer Diego a forjar a minha identidade foi fácil. Apenas o velho não queria a neta, não se interessava, por isso eu fui até ele, por isso o matei. E herdei toda a sua fortuna, esta casa decrépita e... O quadro. Na pintura, um homem sorri, escrevendo cartas numa escrivaninha de mogno, sei que a um olhar mais atento o sorriso é na verdade uma careta de dor. Alguns vultos parecem entrar pela janela, junto à neblina. As cores são doentias, um tom escuro, um verde nauseante predomina; não sei, porém sinto meu peito apertar-se quando vejo o quadro, os olhos do homem parecem seguir-nos por todo lado. O testamento diz que não pode ser vendido, a despeito do valor, deve ser conservado ou doado. Mas ninguém o quer. Desde que o vejo escrevendo, sinto uma necessidade incontrolável de também escrever, este caderno serve para registrar minha história, mas temo que seja encontrado, por isso o guardo comigo para onde vou. Diogo também escreve, vejo como se concentra enquanto os olhos parecem vagar pelo escritório.
Os olhos do homem me seguem, Diego riu, dizendo que era remorso, mas jamais conheci o significado dessa palavra, posso sentir quando entro na sala, os olhos enfermiços das criaturas me seguindo, por onde vou eles me perseguem. Mencionei as criaturas? Sim, a neblina da pintura se desvanece a cada dia, revelando seres monstruosos, primeiros foram os olhos, depois, ah depois...
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Christine gritou por mim esta tarde, sua face estava pálida e me disse que o quadro estava mudando. Olhei horrorizado e o que antes eram apenas névoas ganharam contornos horripilantes, bestiais, uma massa disforme onde homens e feras tomam formas nas brumas, contorcendo-se em dor e angústia, lançando-nos olhares ameaçadores. Nunca tive fé, mas se há um Deus, clamei por ele vendo aquela monstruosidade. Temo estar sendo influenciado por Christine, seria este um plano para me enlouquecer? No entanto, vejo que está bastante perturbada a minha menina. Gritou para que fosse embora e a deixasse. Não quer mais sair e sinto o cheiro de remédiosna sua pele, entretanto, ela nega que os esteja usando, ao contrário, constantemente me acusa de estar viciado em antibióticos. Dois meses após a primeira, tivemos a segunda morte diante do quadro, a copeira sofreu um ataque epilético enquanto limpava a sala, da queda fulminante não mais se levantou, os contornos do quadro tornaram-se mais vividos, os rostos mais definidos, bestas feras... No entanto, Christine não deseja desfazer-se da obra. Sente um estranho prazer em fitar a pintura obscena.
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Quantos anos minha filha? A voz ecoa e o chiado insuportável parece invadir tudo, não suporto mais os seus olhos cravados em mim. Quantos anos minha filha?, e o cheiro do antibiótico inundou a casa enquanto ouço seu peito miserável chiando... Por onde vou, os olhos malditos me seguem enquanto os monstros entram pela janela e gritam, me amaldiçoando. O quadro, o maldito quadro. A marchand disse que é apenas uma técnica, ilusão de ótica, mas eu sei que as imagens se contorcem e se fundem de forma desesperadora, os gemidos não me deixam dormir e os olhos das criaturas me seguem. Sinto o cheiro dos remédios misturados a uma podridão inominável. Diogo me olha e sei que esconde algo, o quadro me disse, sussurrou para mim enquanto tossia, que eu deveria vigiar os passos do meu amante. Hoje, quando ele saiu, fui ao seu quarto. Encontrei as jóias, a sombra do velho me guiou até elas, escondidas embaixo do colchão. Ah, tolo, tentando me enganar. Eu ri quando seu sangue espalhou-se pelo assoalho de madeira depois sumiu escorrendo pela parede ate a sala onde pendurei o quadro maldito. Chorei então, pois finalmente estava sozinha no meu pesadelo. Posso sentir os olhos de Diogo me seguindo pela casa, às vezes com ódio, às vezes com amor. Juro que o vi chorar certa noite, o corpo retorcendo-se em meio aos outros que entram pela janela do maldito quadro. Todas as noites eles chegam, chamando meu nome, dizendo palavras obscenas que ouvi nos tempos de outrora. Amaldiçoando meus dias pela eternidade.
É noite, o vento sacode as cortinas e acordo mais uma vez com o chiado do peito do velho, ele sussurra no meu ouvido e pede por sangue, sinto o corpo febril e já não posso dormir, meus dias tem sido essa velha poltrona, sinto a presença de Diogo no quadro, posso reconhecer a avaliadora do museu, a velha copeira, me olham angustiados em meio às bestas que aumentam em número e ferocidade a cada dia que passa. Devo apenas obedecer... A faca que encontrei na cozinha servirá aos meus propósitos, tudo que quero é poder dormir sem o cheiro nauseante dos medicamentos nem o chiado do peito enfermo ameaçando sufocar-me no leito.
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O que leio nestas folhas coladas a minha frente e a lembrança do que vi ameaçam toda lógica, escrevo o que consigo entender das letras tremidas e evito pensar no que meus olhos testemunharam. Os corpos estavam espalhados pela casa, nem as crianças foram poupadas, muitos morreram dormindo, outros, encontrados nas posições mais estranhas. Não havia sangue, apenas o horror da morte.
A beleza da herdeira era conhecida por todos, no entanto, passara os últimos meses em reclusão total, até que a insanidade tornara-se incontrolável a ponto de levá-la ao assassinato de todos os empregados. Estava encolhida na velha poltrona, murmurando que eram ordens do quadro, que o velho a obrigava. Foi recolhida a um sanatório, onde uma camisa de força a segurava. Sempre que despertava, gritava por socorro, pedindo que o velho fosse embora. O caso fora arquivado até que seu sumiço repentino me levara de volta a velha mansão. As folhas espalhadas pela casa foram recolhidas por mim, colei todas elas e o que li revelou-me uma trama cruel e a insanidade que trouxera aos moradores. Não entendo como não foram encontradas antes nem penso nisso, apenas registro que leio, sinto uma necessidade absurda de transcrever estes acontecimentos inimagináveis. Aqui, nesta poltrona onde ela passou seus últimos dias, leio e transcrevo o registro de sua insanidade.
Entendo que a pintura os perturbassem, vi enfim o quadro a que se referem as folhas do diário quando abri a porta e um arrepio de horror tomou meu corpo, não pude conter um arquejo. Tal qual uma pintura em trompe l’oeil, as imagens parecem saltar e sair do quadro como num teto profano, uma massa de carnes, homens e feras em um escárnio de dor e ódio. Em meio a eles, vislumbro o rosto de Christine, a mais bela herdeira que esta cidade já vira, entrelaçada ao corpo de Diogo, juntos e amaldiçoados... Seus olhos me prendem e eu apenas escrevo...
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Mais uma morte assolara a velha mansão dos De Álvares, desta vez, um jovem repórter que invadira o local durante a noite foi encontrado dias depois, enforcado na velha sala, a poltrona caída, os olhos arregalados e fixos na pintura que dominava o ambiente. Folhas de uma reportagem insana estavam espalhadas pela casa. Não há justificativas para seu suicídio, e as garatujas encontradas não esclarecem o assunto. Mais uma vez, os portões foram lacrados...
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Nota da autora: este conto é uma obra de ficção, não traduz minhas crenças ou opiniões; qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas reais é mera coincidência.
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2º Exercício de Elaboração de Contos Fantásticos no Fórum da Câmara dos Tormentos. Composição de contos inspirados por imagem.
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2º Exercício de Elaboração de Contos Fantásticos no Fórum da Câmara dos Tormentos. Composição de contos inspirados por imagem.
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Oiii! Indiquei o seu blog para um selinho:
ResponderExcluirTem umas regrinhas no blog, mas vale a pena!!!
http://mundodarkness.blogspot.com/2009/07/selos-e-memes.html
=D