21 de ago. de 2009

Fome Voraz

Fome Voraz

Todas as noites, ela passava por aquele barzinho da esquina, cadernos e livros desequilibrando-se nos braços finos. Os bebuns conheciam seus passos, ar ligeiro, óculos na pontinha do nariz! Era bela sem sê-lo, seu dom: causar sorrisos... E inesperadas ternuras.

Foi quando o jovem aparecera. Orgulhoso, calado, ele a vira, e desde então, há seis meses, a mesa da esquina era do desconhecido. Depois que ela passava, ele tirava uma grossa gorjeta e partia na noite escura sem dizer nada, o rosto em sombras. Todas as tentativas de comunicação foram ignoradas.

Todas as noites, ele a via, doce, sozinha, distraída... como uma chama na escuridão da noite, ocupando-lhe os pensamentos e desejos. Uma sede outrora perdida o inundava ao ver os traços delicados e rosados, os cachos castanhos emoldurando o rosto meigo.

Todas as noites ela o via, sozinho, pensativo, sombrio.

Os olhos seguiam-na quase como um vício, os freqüentadores do bar observavam desconfiados, a fixação do desconhecido, noturno e calado. Sussurros sobre necessárias providências, avisos velados e totalmente ignorados, se alguma suspeita atitude partisse do rosto pálido, tristes figuras soluçariam uma busca de soluções.

Atípica noite aquela, quando uma densa neblina começou a cair lentamente em volta ao bar, escondendo o luar num denso mergulho.

Era noite, já alta, e ela estava atrasada, os poucos freqüentadores distraiam-se no bilhar, e quando o desconhecido esgueirou-se em busca do que almejava, não foi sequer notado. Os caminhos de uma neblina calma cobriam a noite outrora translúcida.

— Espere!— A voz era doce, algo urgente. E ela esperou, calada, imóvel.

Quando o jovem se aproximou, o corpo delicado da menina virou-se lentamente, o rosto redondo, os óculos na pontinha do nariz, ela o fitou, um sorriso desenhado-se nos lábios cheios.

Olhos agudos, confiantes, ele disse, num tom quase profano, enquanto se aproximava:

— Eu sou Victor, qual o seu nome, menina?
— Esmeralda.

Ele quase não ouviu o nome balbuciado, mas sorvendo a doçura da voz com voracidade, estendeu as mãos antecipando a queda dos cadernos, aproveitando para tocar os dedos delicados. Tudo está saindo de modo perfeito, ele pensava, a doce criatura seria sua ainda aquela noite! E suspirou, sedutor:

— Sempre te espero, minha noite não se completa desde que a vi pela primeira vez, e, há seis meses, desejo falar com você..

— Eu... queria te conhecer também. Sim... seis meses, eu também te vi...

— Não tem medo de andar sozinha por aqui? Pode ser arriscado.

Ainda sorrindo ela explicou que já havia aprendido a se defender, além de, indicando a direção do bar, ter amigos na noite. Assim dizendo, começou a caminhar, Victor a seguia, passos lânguidos em direção a noite cada vez mais cerrada, ouvindo a voz ainda adolescente explicando o motivo do atraso, sorrindo da ingenuidade da garota, era mesmo muito meiga, desconhecendo assim as armadilhas da vida, cada minuto daquela espera tivera valor.

Na esquina escura pararam, quando os braços de Victor a envolveram, Esmeralda suspirou de prazer antecipado, esperava aquele momento com ansiedade. O corpos entrelaçaram-se, e quando os lábios atingiram o pescoço desejado, um grito se fez ouvir, desaparecendo num longo murmúrio.

Era a fome, ancestral, herdada sem pedidos, transformada agora em doce vício. Era a fome, era a volúpia da caçada, o sabor da carne despedaçada a cada mordida,o monstro vencendo o humano, o sangue sorvido com desejo voraz, os dentes rasgando a carne tenra, e a noite como única testemunha.

A lua reaparecia tímida no céu, arisca, quando Esmeralda mordiscou o lábio inferior, satisfeita, limpando com ponta da língua o resto de sangue ali presente, a satisfação invadindo seu corpo, seu sangue, sua mente. Por seis meses ela o chamara, até aquela noite, quando enfim a sua fome fora satisfeita.

Empurrou delicadamente com os pés os ossos que amontoavam-se descarnados, brilhando ao luar. O sabor dos apaixonados era mais doce, intenso como um vinho encorpado, e por mais seis meses ela poderia esperar, estremecendo com a doçura daquela alma melancólica percorrendo seu corpo.

Até a fome de novo chegar, até o próximo escolhido chegar ao seu destino. Esmeralda desta vez desejava provar um sabor antigo, queria a experiência de muitas noites deleitando seus sentidos, e o novo professor de Literatura já a fascinara.... Sim! Sua escolha estava feita, sabia que a paixão os deixavam ainda mais saborosos, seus caminhos de sedução teriam início na noite seguinte!

2 comentários:

  1. Adoro contos com finais inesperados! Parabéns está na dose certa! Posso carregar este para o Incolor??? =D

    ResponderExcluir
  2. Muito bom. Adicionei seu blog como favorito no meu...

    ResponderExcluir