31 de out. de 2010

Quando Deus nos abandona - Um conto de Paulo Soriano

Lebourreau, o bruxo astuto e poderoso, aproveita-se da dor e do desespero de uma mãe e, com a astúcia das sombras convence, deturpa, ludibria, engana, ah, mago cruel cruel. Conheça Lebourreau neste conto sombrio, melancólico e angustiante de Paulo Soriano, e lembrem-se, “Quando Deus nos abandona... Lebourreau  nos assoma.”! 


Quando Deus nos abandona
Paulo Soriano
 Para Fernando Ferric.

As vigorosas batidas, que vinham da porta da cabana,  deixaram o coração de Thérèse em sobressalto. “Quando Deus nos abandona - pensou Thérèse -, Lebourreau  nos assoma.”
— Quem bate? – perguntou Thérèse, embora bem soubesse que Lebourreau, com a lanterna em punho,  lançava a sua sombra maligna sobre os umbrais da pobre choupana.
Thérèse  apertou ambos os filhos contra os seios, sentido-lhes a respiração quente e irregular, típica dos moribundos devastados pela peste. E, arrastando-se como podia,  recolheu-se ao  ângulo mais remoto da parede. “Quando Deus nos abandona - pensou Thérèse -, Lebourreau nos ilude.” O vento, que se esgueirava pelas frestas de adobe, trouxe consigo a voz calma e melódica do velho mago:
            — Deixe-me entrar.  Trago-lhe boas-novas!
            De Lebourreau dizia-se, em toda Valônia,  que era um bruxo astuto e  poderoso.  Ouvira da mãe que aquele ente medonho habitava cemitérios desolados, onde há séculos praticava sortilégios. Amiúde comentava-se que, nas noites de plenilúnio, o mago reunia-se com as bruxas e, de corpos nus, realizavam o sabá.    “Quando Deus nos abandona – dizia-lhe a mãe –  ele vem e nos ludibria!”

            Há dois dias e o pequeno Jean-Pierre corria livre pelos campos, gozando a imensidão das planícies  e a luminosidade intensa do verão.  Mas viera a peste, tão súbita quanto cruel, e, com o seu beijo nefando, cobrira o corpo do garoto de pústulas negras e aquosas, cujo odor desagradável entranhava-se no ar como se arauto da morte certa.  E Cosette, com suas mãozinhas febris, não arredava dos seios maternos. Mas a menina decompunha-se ainda viva. Do corpo pequeno e desconforme fluíam emanações mefíticas, tão nauseantes que somente a mãe podia suportar. Como era avançado o estado de degeneração da criancinha! A enfermidade avançava célere naquele corpinho disforme. Cosette, silenciosamente,  agonizava.
 — Pobre Cosette – disse a mãe, beijando-lhe o rostinho cravejado de pústulas e  de grosseiras ulcerações.
— Deixe-me entrar.  Ainda há esperanças – o vento trazia a voz melódica do velho bruxo. –  Trago-lhe uma esperança que o seu Deus esqueceu-se de lhe ofertar.
            Jean-Pierre também morreria. Assim como aqueles cruzados que retornaram de Jerusalém.  Mais algumas horas e todas as ulcerações eclodiriam num ruído surdo, salpicando, à pressão incontrolável da  febre sempre crescente, o líquido asqueroso na atmosfera impregnada de humores deletérios.  O corpo, lacerado por  ilhas de carne viva, precipitar-se-ia para  uma tonalidade  roxa escura e, então, viria a inexorável decomposição da pele, da carne e  das  entranhas. E Cosette, agora, sangrava por todos os orifícios. Também – e principalmente –  pela abertura do olho que lhe faltava. O outro era morto e oboval, projetado para fora como o de um camaleão.  Cosette nascera cega, corcunda e  coxa.  Pobre Cosette, condenada pelo Senhor a deambular desgraciosamente pelas planícies pedregosas da Valônia, fazendo de sua  muleta uma bengala, e, de ambas, as sua sina,  enquanto, curvada ao  peso da corcova, estendia as mãos implorando migalhas dos viajantes. Não!  Melhor assim.  Melhor que o bom  Deus ceifasse, desde já, um futuro tão hediondo!
            — Entre – respondeu, finalmente, Thérèse.
            A porta da choupana se abriu. O vento gemeu e rodopiou nas úmidas paredes de adobe.  O mago entrou. Trazia numa das mãos uma lanterna que lhe iluminava a sobrepeliz carmim e o capuz escarlate. O luzeiro iluminou-lhe as faces cavernosas. Thérèse tremeu de pavor.  O mago continuou, com sua voz mansa, que se lhe escapava das ranhuras de uma fileira de dentes amolados:
 — Tenho uma proposta.
 — Leve-me. Mas cure os meus filhos.
 —  Não, não a quero. Quero Cosette. Quero a pequena.
 — O que ganharei em troca?
 — Jean-Pierre viverá.
 Thérèse ponderou.  Entregou a pequena.
             — Decisão sábia – redargüiu o homem com gravidade.  E acrescentou, piscando maliciosamente um olho de coruja:
 — De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?
 Após uma pausa – uma longa e meditativa pausa –, o bruxo concluiu, prazerosamente, com as garras em riste para Cosette:
            — Hoje sinto uma grande fome. Arranjar-me-ei bem com ela.
            O mago mergulhou a criança nas  rubras abas de sua sobrepeliz e saiu. Atrás de si ficou o farfalhar monótono de uma capa escarlate, sibilante ao  vento que se decompunha em silêncio e se fazia silêncio, enquanto a solidão, coroada pelo desespero, ficava irremediavelmente  para trás. Então, nesta mesma solidão,  que era a imensidão de um  casebre, um arrependimento cruciante reverberou na alma de Thérèse. Cosette!                A pequena e indefesa Cosette! Não seria justo que a peste a levasse, com seu corpinho repulsivo e disforme,  para os campos sepulcrais? Não seria melhor assim?  Se é que esta era a vontade de Deus, haveria por que se  rebelar? Cosette já estava morrendo. Morrendo  irremediavelmente.  Mas, entregar Cosette aos dentes anavalhados daquela coisa imunda... Saciar a sede e a fome de tão abjeta criatura  com as vísceras e   o sangue inocente de sua filha... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau vem para nos tentar e iludir...”
 — Meu Deus, o que eu fiz? – Bradou Thérèse,  na fria escuridão de seu antro.
            Thérèse arremessou contra a noite. Ganhou os campos e as  planícies, clamando pela filha. Atirou-se violentamente aos bosques, caminhando sobre as sendas que se abriam ao fluxo  luzidio do luar. E, quando finalmente amanheceu, e já retornava a casa,  corroída   pela densidade de um  remorso  seco e cáustico, Thérèse vislumbrou, ao longe, algo oscilar ao sabor da brisa matinal. Era um trapo.   Era o corpinho de sua  filha.  A garota fora empalada num galho que, inclinado, deitava reverência ao chão.  Traspassada pelo dedo arguto de um  arbusto,  Cosette trazia a garganta  dilacerada por dentes tumultuosos,  e  exibia, mais abaixo,  o ventre rasgado por unhas longas e  pontiagudas. Restos de  entranhas, revolvidas e despedaçadas,  estavam derribados ao solo forrado de folhas mortas. Mas, algo de surpreendente acontecera!  O corpinho de Cosette ganhara uma nova conformação. Dois belos olhos azuis, que poderiam perfeitamente enxergar, agora reluziam na face  miúda e bela. A corcova desaparecera e a perna atrofiada  recompusera-se em substância e perfeição.
            — Lebourreau a consertou, antes de matá-la.  Lebourreau ajeitou a minha menina só para devorar-lhe o sangue e algo doce  de suas entranhas. Pobre Cosette! – Thérèse balbuciou, enquanto a pequena mão de Cosette, impelida talvez pelo vento, ou mesmo por uma força sobrenatural,  tão obscura quanto extraordinariamente  absurda, buscava, pela última vez, o calor do seio materno. Thérèse  Gritou, ao sentir que a mãozinha do cadáver comprimia tenazmente o seu peito, ávida de  carinhos. Sentiu que as pernas arqueavam. Que a mente refluía. Que a boca beijava o chão.  Quando voltou a si, depois de um longo pesadelo –  que, àquelas alturas, lhe sabia aos lábios como belos sonhos –,  seguido de   um desfalecimento  negro e espesso,  já anoitecia.
Foram os gritos de Jean-Pierre que trouxeram Thérèse de volta à consciência. Sim, Jean-Pierre clamava, não muito longe. Gritava pela mãe, Jean-Pierre. E como gritava!  E como eram saudáveis os seus pequenos pulmões, antes impregnados de peste e purulência!  Jean-Pierre estava vivo. Escapara milagrosamente à morte certa.   Lebourreau cumprira a sua promessa... “Quando Deus nos abandona, Lebourreau...”
Pôs-se, então, a  mulher a correr.  Percorreu as sendas com os olhos enevoados por  lágrimas tão densas que afundavam nas órbitas e se recusavam a cair. Por um momento, esqueceu-se completamente de Cosette.  Teria Jean-Pierre só para si. Teria Jean-Pierre curado, livre da febre e das pústulas nauseantes. Vivo de novo. Novamente vivo e saudável!“
            ...Lebourreau... nos ajuda!”
 Ao chegar à clareira, viu que Jean Pierre equilibrava-se, como um bêbado, à porta da choupana de adobe. O garoto escapara à peste.  Mas...
O garoto caiu.
Thérèse parou.  Um choque.  Seus pêlos se eriçaram como se atraídos por uma auréola magnética. Uma auréola que os santos recusam e que os demônios impõem.  E um frio violento, vindo de suas trôpegas entranhas, sacudia-lhe o corpo e enredava-lhe a alma infeliz, enquanto ouvia o garoto gritar.
            “De que lhe serviria uma criança aleijada, se sobrevivesse?” –  a voz do mago fulminou a mente de Thérèse, que foi ao chão, com o corpo dominado por longos e dolorosos espasmos.
— Mãe!  Mãe, estou cego! - bradava  Jean-Pierre.
Thérèse, antes de contorcer-se na lama,  vira que o olho direito de Jean-Pierre  já  não mais  existia. E, com pavor, reparara que  o olho  esquerdo do pequerrucho, sujo e embaçado,  saltava-lhe da órbita qual  um ovo grotesco.
— Eu não posso andar! –   urrava desesperadamente  o menino,  irremediavelmente  coxo e esmagado  por  uma corcova medonha, uma intumescência  que lhe  vergava o dorso deformado e lhe estufava o peito à semelhança de  um pombo monstruoso.
À semelhança da pequena Cosette.

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