21 de abr. de 2010

Angeline


Angeline
Por Tânia Souza

Ah, os poderes da mente, do medo e do pavor cercam o homem com tais tentáculos que até mesmo o inferno toma forma se o homem assim o crer. Eis o que dizia-me, exaltado, o jovem estudioso que fazia-me companhia. Meus olhos estavam perdidos na paisagem alagada, falávamos ainda pouco de um vizinho, conterrâneo que, crendo no sobrenatural, fora tomado pela insanidade. Sim, a mente tem poderes desconhecidos, mas desconhecidos são também os mistérios e as sombras do universo. Ele pareceu perturbar-se com estas murmuradas palavras, engolindo o chá e fitando a biblioteca, constrangido com minha resposta. Ah, a juventude! Sim, me vejo nos fios escuros deste doutor menino. Quando jovens, nada nos impede, nada nos limita a não ser a força da vontade, até que n’algum momento nefasto, as sombras irradiam-se, cercam-nos e delas jamais nos recuperamos.
A chuva havia chegado e com ela, os demônios bem o sabem, meus pesadelos. Quando o céu desaba, meus ossos doem como se lâminas estivessem brincando nas sofridas articulações. A chuva pela qual estive esperando finalmente caíra, feroz no início,  a tempestade se foi levando consigo parte da verde paisagem. Mas, como sempre que chove torrencialmente por horas, o nível do rio subia a cada minuto e, com o corpo cansado e tomado pelo peso dos anos, só me restara ver a chuva caindo, impedido de sair. Portanto, eis como chegara até aquele instante, quase sem assunto perante a vivacidade da juventude. Num estado semi-adormecido, perdido na modorra do dia, meus pensamentos voltaram-se há um dia fatídico, quando era ainda jovem e cria que o mundo era meu. Um mundo de lascívia e perdição que tornara-se o caminho para a personificação do mais hediondo mal.
Ofertei-lhe, assim, àquele incrédulo cientista que o destino fizera meu bisneto, um pedaço de minha história, aquela da qual jamais falara, entanto, estivera sempre comigo. Ofertei-lhe um retrato de Angeline.


I

 Na época, contava já com vinte e oito anos e passava meus dias na velha hacienda de meu pai. Viajando pela Europa, o barão tentava um meio de encaminhar-me para os negócios e deixara-me ali sob ameaças veementes, entretanto, amigos vinham constantemente alegrar-me do tédio rural.  Naquele dia também chovera e preso naquela velha fazenda, nada conseguia afastar-me do tédio, a tempestade afastara os amigos que iriam entreter-me, minha amante não se encontrava na província, noite alta, a besta em mim rugia quando saí em busca de caça. As poucas serviçais que ainda andavam pela cozinha não me agradavam, havia um cheiro de gordura impregnado em sua pele, olhos cansados não guardavam surpresas, ao me verem passar, aprumavam-se, esperando pelas ordens. Vi, a um canto, uma garota sentada, de cabeça baixa, que brincava com um pequeno graveto.
Nermedi, nossa velha cozinheira, a pele escurecida pela lida no fogão, seguiu meu olhar e apertou os lábios, contrariada. Inquiri-a sobre quem seria esta, ociosa na cozinha enquanto todos trabalhavam. Suas explicações confusas mal chegaram aos meus ouvidos, preso que estavam meus sentidos em direção a jovem de cabelos avermelhados. Minha velha ama aproximou-se, dizendo que a moça não era da lida, além de ser gente de fora, com outros costumes. Suas mãos se retorciam nervosas e quando levantei de modo brusco o braço, mandando a calar-se, ela encolheu-se. Sim, todos, inclusive esta que havia sido a minha ama de leite, temiam meus gestos inesperados e a firmeza que imprimia para manter a ordem.   
Aproximei-me da criatura, com a garganta seca, perguntei-lhe o nome. Eu queria ver o rosto que se ocultava, mal sabia que a partir daquele instante, minha vida tomaria um rumo sem volta. A garota levantou a cabeça, o cabelo trazia-os parcialmente escondidos sob a toca desbotada, mas os lábios eram cheios e num tom carregado, disse-me o nome que haveria de perseguir minhas noites ate o fim dos meus dias:
 — Angélin... señor.
Ah, Angeline, Angélin... os sons de um francês fora de moda mesclados ao espanhol corrente impressionaram-me sobremaneira, soube depois que ela não era francesa, que morara por muitos anos em New Orleans, de onde viera com os parentes em situação não explicada, pedir abrigo e trabalho na hacienda.  A família era composta por duas tias, uma madrinha e um velho primo, todos trabalhavam arduamente, mas a pequena era poupada do trabalho por eles. Naquela noite, esperava pelas tias na cozinha para não ficar só na velha tapera que estava lhe servindo de moradia.  Minha escolha estava feita e selei meu destino quando estendi a mão e disse:
— Venha comigo esta noite Angeline.
Nermedi precipitou-se em minha direção, implorava-me que não o fizesse, mas calei a velha alcoviteira com um safanão.  A moça continuava no lugar, os olhos de longos cílios espreitavam-me.  Pensava eu que era pela honra da moça que temiam e fiz minha promessa: depois negociaria com os parentes a pureza da moça, se é que ainda exista tal coisa e assim, minha risada ecoou pela cozinha.
Naquela noite, arrastei a bela Angeline ate meu leito e a despeito dos seus protestos, satisfiz no seu corpo minha sede; o tempo, porém, mostrou que nada tinha de angelical; tímida e arredia a principio, logo tornou-se minha única amante; A família só parou de reclamar quando mudaram-se para uma casa melhor e a própria os convenceu que a escolha também foraa dela. Ardorosa e ciumenta, apimentava nossas noites com requintes exóticos, cantilenas e bebidas preparadas talvez somente em lugares longínquos e proibidos. Por alguns meses, ela me fez feliz.  Foi aos poucos que comecei a notar-lhe os excessos. Não era simplória, havia nela uma personalidade voluntariosa, gostava de mandar e posteriormente, me divertia ver a pequena agindo como senhora da casa.
Ouvi muitas vezes murmúrios sobre a bela, mas viva então de tal forma que nada me interessava desde que não afetasse diretamente meu bem estar.  Gostava de presenteá-la com tecidos luxuosos e apesar de não ter se mudado para a casa grande, costumava passar muitas noites lá.  Uma noite que Angeline encontrava-se amuada a um canto, procurei por  uma jovem italiana que chegara a pouco na hacienda, viúva, com um filho de dois anos, logo suas curvas chamaram-me atenção, rolei algumas vezes com a jovem pelos celeiros, não sei como Angeline ficou sabendo, mas de alguma forma, executara sua vingança durante a noite: a face da moça no dia seguinte estava irreconhecível, as unhas de minha fogosa amante tornaram-se afiadas e os ferimentos infeccionavam a cada dia, de tal modo que a beleza de Maria perdeu-se para sempre nas cicatrizes que deformaram sua face.
Naquela noite, eu mesmo apliquei com prazer a punição pela selvageria de Angelina, no entanto, seus gritos encheram-me volúpia. A cada chicotada, ela despertava em mim instintos obscuros, que só se saciaram no seu corpo suado e trêmulo.  Temi seu ódio, mas a paixão dela somente crescia. Passado alguns dias, quase ao anoitecer, passeávamos Angeline e eu perto dos estábulos, quando ouvimos um dos tratadores murmurar:
— Unha de venenu, unha de feiticeira, unha  imunda, coitada da minha Maria... mas a feiticeira há de pagar, há de pagar...  — A cada palavra, a pá revolvia com força a terra. Os olhos de Angeline arderam em ódio, o chicote que ainda permanecia em suas mãos foi firme e certeiro nas costas do homem. Tive que segurá-la, mas prometi o castigo merecido pela ofensa a ela dirigida. Assegurei-lhe que o capataz chicotearia o tratador de cavalos ainda aquela noite.  Minha dama fez questão de ver o açoite, Angeline sorria a cada chicotada e, debalde sinta arrepios ao lembrar-me disso, agradava-me sobremaneira satisfazer os instintos animalescos de minha pequena, pois a volúpia arderia entre nós logo após o castigo do infeliz. Os lábios dela moviam-se de modo quase imperceptível, murmurando palavras entrecortadas em um esgar de ódio, que imediatamente lembrou-me de uma serpente venenosa que vira certa vez dar fim aos nossos cães. No entanto, ela sorriu-me e a impressão ruim passou.
Naquela noite, a orgia deixou-me exaurido, o olhar sedento e as beberagens de minha amante inspiravam-me sempre um estranho estado de euforia. No dia seguinte eu sentia os efeitos da noite, mal conseguindo levantar-me pela manhã. O vinho e a excitação dos sentidos haviam-me deixado numa estranha prostração. Sonhos inquietos, gritos e pesadelos assombraram minha noite.  Acordei perto do meio dia, um estranho silêncio pairava na hacienda, Nermedi fitou-me pesarosa e ignorando as conversas baixas das mulheres, resolvi procurar pelo tratador, apesar do rigor das punições, sempre cuidava para que se recuperassem bem. A força andava junto com a ordem, porém, era mais que necessário preservar a saúde dos trabalhadores.
Soube então que o tratador havia se evadido do celeiro onde repousara durante a noite, procurei meu capataz para adverti-lo pela falha, contudo ele me assegurou que havia sido algo de outro mundo que levara o infeliz. Como sempre, gargalhei perante as superstições do povoado.
—... perdoe-me, mas há muito os murmúrios andam pela fazenda señor e ...
— Cale-se! Não tenho tempo nem paciência para estas crenças e tolices. — E assim, antes de totalmente entediado, afastei-me das tolas explicações do homem gaguejante, advertindo-o apenas para que isso não tornasse a acontecer.
Ah, quem me dera poder voltar ao tempo e ouvi-lo, tanto mal teria sido impedido, mas estava cego pela paixão, preso a um feitiço de carne e desejo.  
Meu pai por esta época voltava da Espanha, onde nossa quinta prosperava e trouxe-nos uma surpresa que desagradou terrivelmente minha possessiva amante. Um contrato de casamento. Sim, eu deveria enfim ingressar ao rol dos homens de respeito, ou isso, ou seria deserdado. Angeline, revoltada pela presença de meu pai, que inibia seus desmandos, vociferava quando soube do noivado. Pouco fiz para acalmá-la, enfastiado já de suas cenas, pensava em como poderia afastar-me de vez.  Também eu não tinha interesse no matrimônio, entanto sabia da necessidade de uma união com a casa Valenzuelas, que só nos traria vantagens, assim, preparei-me para satisfazer a vontade de meu pai. E dizer adeus a minha amante francesa.
Começara assim meu martírio e castigo pela devassidão da qual fizera companhia constante.

II

Com a presença de meu pai, Angeline fora obrigada a dormir na casa da família, o fato trouxera-me alívio e fúria para pequena. A pretexto de preparar-me para o casamento, fiz uma pequena viagem e por alguns dias, respirando o ar da civilização, pernoitando por salões e casas indescritíveis, livrei-me do fascínio pela francesa.  Ao retornar, não tive duvidas em rechaçá-la, ainda que a desejasse, entediavam-me seus amuos e rompantes de raiva. Entanto, surpreendeu-me sua calma, quando disse-lhe que não mais estaríamos juntos. A família permaneceria na hacienda.  Tudo parecia nos conformes e meu pai liberava-me o ouro para jogatinas noturnas enquanto aguardava os trâmites do matrimônio que me fariam, enfim, um homem honrado. Sentia-me liberto do seu julgo e a felicidade dominava-me, já então pensava na espanholinha que seria minha esposa, mas continuava aquecendo as noites com moças da hacienda, a cada uma, um presente, um agrado, um marido se assim fosse preciso. No entanto, a aparente calmaria escondia tempestades incalculáveis. 
            Certa manhã, meu pai adoeceu terrivelmente, embora médicos de todos os lados cercassem o seu leito, lacerações cortavam-lhe a pele como se estivera emaranhado nos arames que cercavam nossa hacienda. Em duas noites já não manifestava qualquer reação, os músculos quedavam-se paralisados. Morto em vida, dir-se-ia que agonizava um sono mórbido, não fossem os olhos que seguiam-nos por toda parte, como que implorando ajuda e as palavras que, inesperadas, ora imploravam ajuda, ora lançavam maldições a tudo e todos. Os remédios e sangrias nada puderam fazer por ele, empurrávamos alimentos por sua garganta cerrada, mas a tudo devolvia. Meu pai definhava e um sentimento que nunca suspeitara sentir por ele atordoava-me. Íamos nestes padecimentos quando, dada noite, aflito com as visões daquele a quem sempre julguei superior subjugado aos malefícios que não podiam ser identificados, busquei na noite escura abrigo para os sentimentos que me consumiam.
Ah, meu pobre pai, amado pai, como doía-me vê-lo definhar, as lacerações na pele ardiam-lhe horrivelmente e amaldiçoava-nos com palavras que nunca dantes o vira pronunciar, a cabeça movia-se quase obscena pendendo do corpo inerte. Estava perdido nestes lamentos, na varanda dos fundos, oculto nas sombras disfarçava algumas lágrimas fortuitas quando assustei-me ao sentir a meu lado a presença de meu velho capataz. Este homem valente e fiel estivera conosco antes ainda que eu nascesse e, nos seus modos quietos e calados, falou-me de coisas que não ouso repetir. Fora uma conversa estranha e sombria, na qual ele pedia-me a licença de agir conforme acreditava, se eu o permitisse, teríamos assim uma pequena chance de salvar el patrón. Apesar das reticências e das perguntas não respondidas, dei-lhe minha palavra, não importava o preço, que salvasse meu pai. Assim feito, pude então adormecer.
Acordei com ruídos e gritos obscuros. Entorpecido ainda pelo sono caminhei até a janela de minha habitação. Eis que vi a morada de Angeline ardendo em labaredas e fumaça, o fogo parecia incontrolável. Não sei como meus passos guiaram-me até lá, ouso apenas dizer que ainda nutria sentimentos pela pequena. Entretanto, Angeline não estava ali, apenas o primo, via-se claramente que fora agredido violentamente, a pele mostrava-se marcada como se o sangue pisado quisesse aflorar a qualquer momento. Procurei com os olhos, mas não vi o restante da família. Haviam fugida da sana daquela gente. Entanto, antes de indagar sobre as causas da revolta, chamaram-me de volta ao casarão.
O que meus olhos e minhas mãos viveram ali marcou para sempre meu destino. Aos murmúrios, os empregados abriram passagem e vi um boneco tamanho médio que fora depositado cuidadosamente sobre a mesa, enquanto eu me aproximava. A imitação grosseira não deixava dúvidas, tratava-se de uma réplica de meu pai, vestido com retalhos de velhas camisas, arames farpados envolviam o pequeno boneco, rasgando o tecido e deixando o recheio de palha e galhos expostos, tal qual seu corpo apresentara-se retalhado.
Compreenderíeis, se tivesse conhecido aquele homem forjado com a força e a moral nascida na terra, as emoções que me cegaram e levaram-me a um ato insensato e assassino. A ignorância das coisas que não se podem explicar turvou-me e, assim, ainda que tenham tentando me impedir, a dor e a fúria tomaram meu juízo e estraçalhei o pequeno ser em pedaços, arrancando o arame com as mãos, ignorando o sangue que derramava naquele ato. Ah, angústia, essa fera mesquinha que ainda hoje agulha minh’alma, a angústia pelo que fizera assalta-me a cada noite e não posso esquecer a minha pena. Mal terminara de destruir o boneco quando ouvi pranto e dor no quarto acima. Esvaindo-se em sangue, meu pai deixara a vida com um grito aterrorizante.
Vodu! Arrepios percorrem ainda minha pele quando recordo o que senti quando a palavra que ouvira somente em lendas e crendices tomava corpo e forma frente a mim. O capataz há muito suspeitara das atividades ocultas naquela casa e, diante de sua acusação, o feiticeiro assumira a culpa dos malefícios, entregando-se  enquanto a família ocultava-se na mata cerrada. Meus atos insensatos ao destruir o boneco fizeram-me cúmplice, eu assassinara meu pai. A culpa e ódio dividiam-me quando segui para o local onde o maldito aguardava calado, perante seu silêncio, tirei-lhe a vida com o ódio e segui em busca da família que fugira. Não os encontrei. Fugiram as tias para nunca mais serem vistas. No entanto, eu fora duplamente um assassino, primeiro de meu pai, segundo, punindo a pessoa errada.


III


Os dias se passaram em confusa névoa. Enquanto minha noiva aguardava o momento de vir até mim da longínqua Espanha, a dor de ter causado a morte de meu pai mudou-me irreversivelmente, levava meus dias entre os trabalhadores, guiava minhas decisões com justiça, recolhia-me cedo e me preparava para o casamento. Uma tarde, trouxeram-me noticias dela, já haviam se passado semanas até que encontrei Angeline a beira do rio; exausta, tinha o corpo molhado e os olhos grandes fitavam-me assustadiços, estremeceu a me ver chegar, as vestes cobertas de lama e rasgadas. O rosto pálido, o corpo magro e trêmulo, ajoelhou-se e pediu-me perdão. Quando falou em meu pobre pai, gaguejando amor para justificar seus atos, a piedade deixou-me e chutei-lhe com raiva, ela então o sabia. Gritou quando a empurrei para longe, que a ajudasse e, por amor ao filho que crescia em seu ventre, que a perdoasse. Um pequeno bastardo! Somente os demônios explicariam porque não estaria esvaindo-se no sangue que escorria-lhe entre as pernas. Não a matei, eu não o faria, a culpa do passado impedia-me. Um filho, ainda que bastardo, era um filho. Tirei a camisa empapada de suor e joguei sobre ela, deixando que partisse; sem olhar-me, seguiu arrastando-se nas margens do rio enquanto eu voltava para cuidar da triste realidade que me esperava. Antes a tivesse matado.
Vagos dias aqueles. Nermedi algumas vezes fitava-me como se quisesse me dizer algo, mas sempre recuava. Entretanto, o mal que parecia ter partido para sempre mostraria mais uma vez sua face sombria. Noite fria, acordei com uma dor lancinante, dir-se-ia que vermes devoravam minha carne com dentes de ferro. Então, abri os olhos e somente vi escuridão, minha visão estava coberta por sombras e meus gritos despertaram a todos. Por três dias tremi em febre e dor, olhos nublados e pele ferida pelas sangrias que aplicavam os médicos que acudiam meu leito.
Na terceira noite, mergulhado em um mundo de sonho e delírios,  percebi no quarto escuro um vulto. Cheio de alegria, pensei que fosse a minha visão voltando, mas quando o vulto se aproximou, reconheci nele meu pai, tinha os olhos vendados e a roupa em frangalhos, porém não disse palavra. Entanto, as sugestões poderosas que enviou-me impregnaram-se em minha mente e o medo tomou conta de mim.  Não ouso dizer do que vislumbrei naquela noite, apenas que quando estendi minhas mãos e retirei-lhe a venda dos olhos, um grito o levou para longe de mim.
Despertei na manhã seguinte com a presença de Nermedi aguardando-me. Minha visão estava estranhamente clara, mas isso não a surpreendeu nem a mim, sabia dos mistérios e temia o que o futuro poderia trazer-me. Guiou-me pelas mãos até sua pequena casa, eu apenas a seguia, calado, impressionado com as visões de pesadelos da noite passada. A ama falou-me de Angeline. Lembrei-me dos olhos fitando-me em noites de fúria e paixão, do seu ódio quando fora preterida e da dor de meu pai cortado por arames invisíveis, tendo a vida ceifada duplamente nas mãos e ações de seu filho.
Posso ouvir ainda sua voz contando-me que a moça estava ainda na fazenda, oculta em um velho casebre, a barriga crescia-lhe enquanto a saúde ia embora. Nermedi guiou-me até a pequena sala dos fundos e falou ainda da velha religião, que trouxera consigo de seu antigo lar e que nunca lhe falhara em busca de saúde e paz, uma religião de comunhão com a natureza e os elementos, mas que em corações escuros poderia trazer inclusive a morte.
A mesma fé professada por minha amante. Vodu. Eu o sabia, quanto mais cresse no vodu, mas seria afetado, o medo traria comigo todos os males que poderiam a mente causar-me, entanto, a morte espantosa de meu pai afogava-me em medo e assim, eu estava suscetível. Minha ama queria proteger-me, no quarto escuro, vi ao centro uma cruz de bronze, as pontas enferrujadas não escondiam o peso e a qualidade do material. 
Um terror absoluto guiava-me e toda fé na ciência perdia-se na velha constatação shakespeariana dos mistérios desconhecidos entre o céu e a terra. Aceitei. Enquanto seguia calada ao meu lado, sei que temia minhas represálias, mas não importava, a despeito de tudo, temíamos o mal que Angeline poderia inda causar, queria fazer-me um ouanga protetor, um contra feitiço. Na sala onde a cruz de bronze estendia-se, sentei-me e vi Nermedi preparar o pequeno amuleto, que supostamente iria me proteger do mal. Em um canto, coberto por um tecido branco, um altar exibia alguns deuses, ofertas e santos da religião.
Não lembro com detalhes, parecia-me tomado por um sonolência, ansiedade por rever Angeline, o receio por tudo que vivenciara e o medo do futuro me deixavam naquela estranha prostração. De um pequeno baú, retirou folhas de cores e aromas variados, algumas eram folhas que eu conhecia, algumas de usos medicinais comuns, outras, nunca vistas por mim. Jamais imaginara em meus dias que Nermedi tivesse tais conhecimentos, minha ama nunca falara da religião por medo de represálias, murmurava baixinho enquanto empilhava as folhas. Cuidadosamente cortou uma pequena mecha dos meus cabelos e amarrou junto a um pedaço da unha de meu polegar direito e um pedaço quadrado, bem cortado, de uma das minhas camisas usadas. Isso tudo formou uma minúscula trouxa. Meu coração batia furiosamente quando ela depositou essa amarração sobre a cruz de ferro e rezava orações que eu conhecia desde criança ao mesmo tempo em que murmurava para os deuses do altar que ela venerava naquela sala. Não sei o que senti, além de um estranho arrepio por sua voz e suas mãos agindo sobre mim. Ainda não estava pronto, muitos encantos ainda seriam feitos mas finalmente ele me foi entregue e, desde esse dia, usei o pacotinho amarrado junto ao pescoço como forma de proteção. 
Eu estava pronto para rever minha amante. Atravessamos mais uma vez a casa de Nermedi e caminhamos até um casebre abandonado. Lá, Angeline queimava em febre, deitada sobre um velho colchão, os percevejos feriam-lhe a pele e ela apresentava uma barriga proeminente. Falou-me em sussurros de amor e ódio, de almas eternamente ligadas, pediu perdão pela escuridão a que me submetera e que não mais o faria. Sim, mais uma vez fora ela, ousando num pequeno boneco esconder os olhos com um pano imundo, conseguira tirar-me a luz por três dias, somente assim eu viria ate ali e ela poderia falar-me enfim. Aproximei-me de Angeline com asco, o corpo que outrora fora meu encanto e perdição cobria-se de pústulas, mas a barriga pontiaguda fascinava-me e o antigo ódio fora embora, via-se que em breve a morte a levaria. Não era perdão o que ela buscava. Não, era uma oferta, uma troca. Uma vida por outra vida, eis o que propunha-me Angeline. Que eu reconhecesse o filho de nossa devassidão e ela poupar-me-ia de horrenda morte. Mais uma vez, neguei-me a ceder a sua chantagem, não, o menino não seria reconhecido, um bastardo não seria meu herdeiro, quiçá nem vivesse, disse-lhe. Seus olhos ferveram em ódio, mas nada disse. Junto ao seu leito, vi um tecido que reconheci, era a camisa que jogara sobre ela na beira do rio, lembrando da violência de meus atos, voltei-me: o garoto teria comida e trabalho, disso eu cuidaria. Nada me respondeu, voltando-se para a parede esburacada, parecia dormir. Foi a última vez que a vi em vida.  Antes de sair, fiz Angeline saber que se não me deixasse em paz, morreria. Ela e a criança que carregava.
Porem, sei que não o faria. Minhas palavras traduzem em seus olhos a descrença, desprezo talvez, mas tudo o que eu sentia era vazio, a morte de meu pai, o fim daquele amor obsessivo, as experiências que a lógica jamais poderia explicar me transformaram e sentia que não poderia agir contra ela, o medo e a repulsa levavam-me a querer apenas distância da criatura ruiva que outrora fora por mim tão querida.

IV

Por aqueles dias, minha prometida chegou. De uma beleza delicada e submissa, a espanhola parecia-me a esposa ideal. Meu pai fizera uma boa escolha. No dia de sua chegada, Nermedi contou-me, o medo escurecendo o olhar, que Angeline desaparecera. Mas, ah não me envergonho em dizer, o medo que estivera comigo deixou-me e respirei aliviado. Foram dias de rara tranqüilidade, os preparativos do casamento, os últimos acertos entre as famílias, a delicadeza não escondia a firmeza de caráter da minha noiva e, esquecido dos eventos, envergonhado pelo que supunha serem crendices supersticiosas, concordei em desfazer-me do ouanga que carregava.  Pensei em ser feliz, esquecer o passado, reconstruir uma nova existência. Casei-me.
No entanto, alguns dias antes do nascimento do meu primeiro filho – seu avô - choveu. As águas desciam furiosas entre as árvores e os raios cortavam o céu impressionando-nos com a imensidão do universo. Ah, e com a chuva, ao anoitecer os delírios começaram. Eu ria, insanamente eu ria e minhas gargalhadas enchiam de pavor a todos ao meu redor. O espectro de meu pai era minha companhia constante naquelas noites de delírios.
Uma febre violenta levou-me parte da saúde e os tremores sacudiam-me por toda noite. Em dois dias, pequenas pústulas explodiam na minha pele, logo os vermes alojavam-se ali e divertiam-se em devorar-me as carnes e multiplicar-se horrivelmente, ah o medo, este me aferroava a garganta, levava o juízo e meus gritos insanos percorriam a hacienda. Minha jovem esposa fugiu horrorizada para a cidade e jamais aceitou voltar novamente.  Meu corpo ardia em febre, e um cheiro nauseabundo exalava dos meus poros, sentia como se minha carne entrasse em estado de putrefação.
Poderia ter sido levado para sempre pela loucura e pelo medo, no entanto, mais uma vez, Nermedi viera em minha ajuda. Com a ajuda de um curandeiro poderoso, tive uma pequena melhora, mas os pesadelos e a enfermidade persistiam, só havia uma coisa que poderia libertar-me, eu deveria procurar pela origem do meu mal, na mata fechada da fazenda, haveria de existir algo que prendia-me a doença e a loucura. Caberia a mim encontrá-lo e destruí-lo. Aquele homem me disse, o meu maior inimigo era o medo que prendia-me, esse medo era o demônio que segurava a doença e me levaria à morte. E de fato, a certeza de que algo horrível havia sido feito e tão pouco eu poderia para desfazer deixava-me inerte, fraco e entregue frente ao malefício.
Mas por meu filho recém nascido eu resisti, por muitas noites eu procurei, vagando pela floresta em febre e delírios, sentia a presença da morte, os sussurros do medo que feriam minha alma e tiravam-me a razão. Os empregados da hacienda ajudavam-me e por muitas vezes encontravam-me perdido na mata. Entre dias de delírios e sanidade, procurei e eis que certa noite, vasculhando a mata quase cerrada, eu o encontrei.
Um cadáver em avançado estado de decomposição. Um cadáver vestido com roupas minhas. Dizem que aquele corpo quase irreconhecível era do tratador de cavalos. Aquele pobre homem que fora chicoteado e depois desaparecera estava ali, cadáver meio insepulto, vestido com minhas roupas, a mesma camisa que eu usara quando desferi os pontapés no ventre de Angeline, naquele distante dia na beira do rio. Para o feitiço dar certo, era preciso uma peça com o meu suor. Ela o levara até a floresta vestido com minhas roupas e o deixara ali para apodrecer, usara contra mim a mais terrível forma de vingança possível. Se eu não o encontrasse, bem sei que apodreceria em vida, insano pela eternidade. Tentei ignorar os insetos, as larvas e as moscas que passeavam naquele miasma de horrores e arrisquei tirar minhas vestes do que sobrara do pobre homem. Mas...
A mata cerrada, as árvores cercavam-me e o cheiro da podridão daquele homem confundia-se com o meu. Neste cenário, ouvi um farfalhar e virei-me.
Angeline...


Ela olhava-me, os olhos destituídos de vida, a barriga outrora cheia estava lisa, a pele de um estranho tom acinzentado. E ria. Os cabelos ruivos embaraçados com pequenas folhas, os pés descalços e as roupas em trapos faziam-na parecer uma criatura da floresta.  Uma horrível criatura da floresta que se alimentara do próprio rebento para sobreviver.
Ela esperava-me. Minhas mãos tocaram o pescoço fino enquanto ela ria freneticamente. Matei Angeline enforcada e em nenhum momento ela deixou de rir. Ali mesmo eu desfaleci e posteriormente, o malefício foi desfeito por Nermedi e pelo curandeiro. Eu vivi, no entanto, não a venci.
            O cheiro da podridão persiste em mim e sinto-me incapaz de vencê-lo, debalde banhe-me constantemente, ainda que os demais não sintam, posso senti-lo seguindo-me na brisa enquanto meus dias se prolongam na face da terra e vejo-me ainda naquela floresta, sentindo os vermes passeando em minha carnes de cadáver insepulto. posso senti-lo ainda agora enquanto a chuva desaba lá fora e seus olhos esbugalhados de espanto estão fixos em mim.

A pequena Angeline arde no inferno e sei que apenas aguarda por mim.





4 comentários:

  1. Adorei esse conto. Angustiante, tomado por uma atmosfera sombria aonde a catástrofe espreita a cada parágrafo.

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  2. Taí um conto belíssimo e de uma escritora de primeira grandeza. Tânia, qualquer dia vamos tentar publicar esse conto no jornalistas.blog.br pra ver o que acontece? Beijo-te com carinho.

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  3. Anônimo13:35

    Delícia de prosa Dona T. Alguns trechos me remetem ao De Nerval. Posso estar enganado, mas vejo uma forte ( e saudável!) influência dos franceses 'clássicos'.

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    1. Ramon, com certeza deve ter essas influência sim, mas é sempre ao acaso, penso muito em ampliar esse conto, várias cenas permaneceram em minha mente. Valeu pela leitura.

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