1 de fev. de 2010

Obscuro Amor - Parte IV


 
Obscuro Amor - Parte IV

Esgueirei-me, naquela noite, pelos caminhos umbrosos como o criminoso hediondo que me tornara e retornei ao meu lar. As sombras pesavam-me n’alma e trabalhei. Inspirados pelos mais devassos demônios da noite meus dedos moviam-se como nunca dantes. Que dizer daquela noite maldita? Do cenário noturno, cheiros aziagos invadiam minhas narinas quase tomando todo ar;  podia sentir a minha volta bafejos de olhos insanos e demoníacos e ouvia, não pelos meios comuns, mas na frialdade na madrugada que gelava minha pele, lamentos de agonia que arrepiavam-me e deixaram minhas mãos ameaçadoramente trêmulas. Ainda assim, antes que o dia chegasse, a minha obra mais perfeita estava pronta e ainda que por pouco tempo, seria dolorido deixá-la partir.
 Era o dia da entrega, a tarde findava quando conduzi pai e filha até a saleta com formalidade. Quando o pai perguntou-me se estaria pronta a pequena preciosidade,  suavemente indiquei à Ana o vulto coberto por fina seda. Suas mãos ávidas desceram o tecido que cobria o objeto sobre a mesa e, com espanto e prazer, ambos deslumbraram-se: os cabelos eram como o mel, os olhos entre verdes e dourados destacavam a pele translúcida. Sim, minha preciosidade estava pronta. Eu mesmo estremecia ante a criação.
Agradeci e guardei o ouro que comprava a mais perfeita obra. Quando o olhar ressabiado de Ana disse-me adeus, apenas sorri em despedida.   Fez menção de dizer-me algo, mas desviei o olhar. Partiriam no dia seguinte para Paris, onde o Conde F. aguardava.  
E quando a noite cobriu o dia, na mansão de Ana as criadas preparam-se para a viagem e finalmente pude adormecer. Um sono inquieto no qual via-me em sonhos horrendos percorrendo os aposentos de Ana, que repousava docemente. Ousei aproximar-me. No leito, dir-se-ia um anjo adormecido. Mas um vulto me fez recuar e um arrepio de puro pavor tomou-me quando vi a boneca de olhos translúcidos mover-se vagamente em direção a minha amada. Seus passos curtos encaminharam-se até ela enquanto eu, covardemente, encolhia-me contra a parede. Era um sonho, mas senti seu olhar devassando-me a alma quando pegou o travesseiro e começou a sufocar a moça, cujos movimentos débeis foram insignificantes perante a força que a pequena boneca adquirira.  Risos mórbidos e sussurros malditos envolviam-me quando o travesseiro fora retirado. Minha amada ainda respirava. A pequena pérola juntou seus lábios, cópias perfeitas, aos lábios agora pálidos de Ana, sugando-lhe num beijo mortal, os resquícios de sua existência. Juro que chorei quando uma lágrima grossa de sangue deslizou na face da boneca.
Acordei no mesmo instante em meu quarto, com o corpo coberto por suores e esgotado por tremores. A febre tomava-me e sentindo a boca seca, levantei e segui até a sala. A água desceu pela minha garganta ressequida e um ruído assustou-me. Não pude ouvir o som do copo nem sentir a água tocando meu corpo quando ele se quebrou no solo.  
 Ali, no mesmo local onde antes estivera, Ana aguardava-me na sua forma mais perfeita. Somente os olhos apresentavam um brilho que antes nunca vislumbrara. Era finalmente minha. Para sempre! Na mais perfeita forma! 
Na velha mansão, o dia amanhecera com choro e pranto, a menina morrera adormecida. Ninguém sentira falta da boneca. Minha obra prima retornara a mim com a mais preciosa essência, trazendo consigo a alma de minha Ana.
 Eternamente minha!
 Diáfana Ana.
 Eternamente guardada como uma jóia, na mais perfeita forma de uma boneca!
O meu final feliz!

Entanto, o demônio me enganara...            

Continua... 

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 Nota da autora: este conto é uma obra de ficção, não traduz minhas crenças ou opiniões; qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas reais é mera coincidência.

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Esta é a quarta parte do conto Obscuro Amor, que divide-se em cinco partes que  estão sendo postadas aqui em sequência, agradeço aos que acompanharem a saga deste amor obscuro. Aguarde a quinta e última (!) parte.

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