Obscuro Amor
Parte III
Parte III
Assim foram aqueles agônicos meses até o escuro invadir a manhã e o nada persistir. Ana estava prometida e em breve despedir-se-ia. Quem dera, ah, a mim, um simples artesão, ser o dono de sua beleza e afeto.
Delatei meu amor por fim.
Ela riu quando declarei-me, um riso liquido, divertido, como quem espera há tempos por um gracejo mórbido. No seu riso cristalino disse-me que estava noiva, prometida ao conde F. e, em breve seguiria para Paris e nunca mais eu a veria.
Ah, minha dor foi lancinante, jamais conhecera tal ímpeto e fúria, imagens do conde destroçado invadiram minha mente. A fera espreitando em meu olhar a assustou e apresentava as faces coradas enquanto tremia nos esboços que fazia de seu queixo delicado. Desnecessário dizer que desde então já não dormia antevendo o dia da despedida. Eis então que, numa noite em que insone revirava-me na cama, selei meu destino. Torcendo-me em angústia e soluços, cercado por faces que esculpira tendo Ana como modelo, vislumbrei em sonho mórbido imagens do paraíso e do inferno preenchendo-me em dor e luxúria até acordar com meu próprio grito. Porém, a dor e a paixão que assombravam meus dias foram tão intensas que todo resquício de moral e temor à Deus deixaram-me e, prostrado, gritei que sim.
Não me recordo agora o caminho que escolhi para chegar ao cemitério, caminhei a esmo até encontrar uma das mais antigas sepulturas. Um demônio em vida, um demônioem morte. Aquele que ali morava fora famoso pela dor que causara aos seus até os últimos dias de sua existência. Eu bem soubera, era ainda menino quando o abade fizera-lhe o exorcismo, aprisionando o demônio. Ali eu teria minha vitória. As preces que por tantas noites eu derramara foram atendidas na figura daquele ser que visitara meus sonhos com promessas nefandas. A noite pesava e o ar abafadiço calava meus passos entre as tumbas, levando-me ao mais obscuro canto do cemitério. Parado em frente à sepultura maldita, senti um arrepio percorrendo minhas entranhas e me controlei para não fugir.
Não me recordo agora o caminho que escolhi para chegar ao cemitério, caminhei a esmo até encontrar uma das mais antigas sepulturas. Um demônio em vida, um demônio
Sei que se horrorizariam pela eternidade com meus atos, entanto, aos que me escutam, afirmo que agi guiado somente pelo amor. Um luar outrora argênteo ocultava-se na noite umbrosa e gélida que envolvia meus ossos no frio mais insano. Como se despertasse de um longo sono, vi os lábios do menino no meu colo tremerem de frio, resolvi amarrá-lo com o lenço tecido pela própria mãe e que me fora entregue naquela mesma tarde. O láudano já mostrava os efeitos.
Cravei o punhal no pequeno corpo e derramei o sangue de um coração ainda puro no chão sagrado do cemitério. enquanto lágrimas deslizavam na minha pele, uma gargalhada insana calou meus timidos soluços. A faca cortou a pele macia sem dificuldade enquanto as árvores sibilavam e as nuvens esconderam os resquícios de um pálido luar. O riso horrendo também se fora mas meus dentes permaneciam rigidos até a dor ser insuportavel.
Um pacto de sangue, uma divida eterna. Minha oferta fora aceita e o preço não me importava. Um rasgo de horror tomou-me quando as gotas ainda tépidas queimaram-me a pele e senti que a desgraça tatuara-se em mim no toque do sangue daquele inocente e desde então, a desgraça tem sido meu caminho.
Muitas famílias dispostas a cederem seus filhos por algumas moedas.
Muitos demônios a espreitar a insanidade mais profunda e obscura.
O peso do amor ferindo um coração sombrio.
Eu a vi, eu a desejei, eu a teria. Observei a terra sequiosa sorver o sangue infante. Sem recear, senti a lâmina dilacerando minha pele e, em seguida, meu sangue impuro derramou-se em poucas gotas sobre o solo ressequido com o qual eu sempre lutara e logo foi absorvido. As nuvens sumiram e havia no céu uma aura rubra circundando o luar.
Estava feito.
Continua...
Esta é a terceira parte do conto Obscuro Amor, que divide-se em cinco partes que estão sendo postadas aqui em sequência, agradeço aos que acompanharem a saga deste amor obscuro. Para ler desde o início, clique nas imagens a seguir.
Obscuro Amor - parte I
Obscuro Amor - Parte II
Nota da autora: este conto é uma obra de ficção, não traduz minhas crenças ou opiniões; qualquer semelhança com nomes, fatos ou pessoas reais é mera coincidência.
Como sempre, incrível!
ResponderExcluirQue venham as outras partes logo!
^.^
genial, guria! mesmo!!! me encontro ávido pelas partes que seguem o terceiro ato!!! sensacional!
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