16 de nov. de 2010

Instinto

Instinto
 
                                                              
      
       
          Era um vampiro clássico. Nascera em um ano medievo qualquer e desde então, entre caminhos de sombras e lamentos, fizera seu destino. Andar suave. Um dos predadores mais perigosos do mundo velho, porquanto refinado e, sob o fino verniz do charme e da elegância, ardia em lasciva sedução para então, desferir o golpe, o ataque letal consumindo em suspiros uma suave vítima.  Moçoilas, órfãos desamparados, mancebos imprudentes. Quando a caça humana se tornava escassa, caçava entre os animais inferiores, mas sofria um resquício de fome, gostava da essência febril, dilacerar a carne tenra e o frenesi da vida esvaindo-se ao seu beijo frio.

                                                  II

         Assim fora por muitos séculos de morte e eis que a noite o encontra caminhando às escuras. Em Londres, entre vielas sombrias, vultos obscuros e um cheiro rançoso de morte, ele caminhava. E sentia a força da fome. Muita fome. No entanto, a fera oculta rugia, pois sua sede não dependia apenas dele para ser saciada.

            Por varias noites sentira as agulhadas ferinas da ânsia, da sede, mas nada pudera satisfazê-lo. No entanto, aquela noite seria diferente. Os passos de uma jovem arfante ecoavam, estraçalhando o silêncio e, por alguns instantes, os olhos dela voltavam-se temerosos ao seu redor. Sentia a presença maléfica do caçador no negrume da noite e a densidade do medo a sufocava.
            Ele estava com fome na madrugada que fora vazia e solitária. Com prazer, seus sentidos identificaram os passos da moça voltando de alguma obscura ronda noturna. Os dentes rilharam. As unhas arderam no desejo. Mas um silvo agudo o fez voltar-se para as sombras. Muitos guerreiros, assassinos contratados pela nobreza invadiram a noite e levaram sua presa.
           Uivou de raiva e fome enquanto o sol ameaçava surgir. Era preciso voltar ao seu covil umbroso. Antes de partir, sentiu, por alguns instantes, um olhar denso sobre si, um olhar que o devassava. Inquieto como raras vezes sentira-se, vislumbrou a hipótese de um novo predador. Ou outro da mesma espécie invadindo um território que ainda buscava conquistar.

                                                   III

           Ela viu quando ele se recolheu, furioso, faminto, dilacerando com os dentes pontiagudos uma ratazana qualquer. Com um prazer mórbido, deixou que a fome o corroesse por muitas noites, pois, ainda que ele fosse uma das criaturas mais perigosas do velho mundo, não era páreo para ela. Londres era a sua cidade, aquelas eram suas ruas, suas crianças, suas criaturas. E assim seria, e assim foi.

                                                      IV

            Quando a fome o atordoara ao ponto de sentir-se fraco e encolher assustado temendo algum perigo inesperado, quando as ratazanas já não o sustentavam e a insanidade ameaçava controlar de vez a criatura noturna, ela enfim permitiu que ele se alimentasse. Naquela noite, saiu mais uma vez, se escorando nas paredes úmidas, sentindo o bolor entranhando-se nas unhas e a densidade de um olhar que agora o seguia constantemente.
          — Milorde... — a voz era trêmula. Uma face angelical se sobressaiu na noite, estendendo-lhe os braços. — Ajude-me sir, estou perdida.
       Ah, a fome que o dilacerava contraiu-se em seu âmago, no entanto, antes de deferir seu golpe final à caça inocente a sua frente, sentiu a proximidade, o prazer perverso de quem o observava de perto, cada vez mais perto. Os dias de fome e sede findavam, mas... Ele, uma criatura forjada entre os mais obscuros anos, tivera por séculos o instinto apurando a força, a sagacidade vendendo a fera. Ele sobreviveria. Ele se libertaria.
          A raiva e a certeza de ter sido manipulado reavivaram a ferocidade ancestral e o vampiro atacou: atravessando o abismo da folha, pulou na jugular da moça, que deixou escapar um breve gemido de surpresa. Rasgou a pele macia, mergulhou os dentes na carne tenra enquanto o sangue espalhava-se sobre o papel, o lápis ainda apertado entre dedos descorados. Uivou e as ruas de uma pacata cidade do interior foram tomadas por um arrepio horrendo. Ele estava livre em um novo mundo.

                                                  V

            Os dois policiais entraram em silêncio na casa. O cheiro nauseante invadia as narinas e um deles precisou conter com força o enjôo que o acometia. Sobre a escrivaninha, entre folhas destroçadas, os cabelos cacheados da moça espalhavam-se. Ergueram levemente a cabeça debruçada e para o horror dos oficiais, a jovem escritora estava morta. O corpo jazia numa diminuta poça de sangue e a carne do pescoço dilacerada, deixava expostos músculos e nervos em uma estranha e sanguinolenta mescla. Nos rascunhos a frente da moça, cobertos por sangue, os esboços da sua última criação. Palavras que descreviam as ruas obscuras de uma velha Londres, onde uma criança encolhia-se enquanto, dando-lhe as costas e voltando os olhos frios para o alto, uma criatura fitava sua criadora, os traços interrompidos ainda pendendo na ponta do lápis.

7 comentários:

  1. Anônimo18:31

    Belíssimo texto Tânia.Parabéns.

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  2. Tânia, a cada conto, uma nova surpresa. Ótima história!

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  3. Caramba! Que talento! Tânia, você é uma grande escritora, uma das maiores!

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  4. Ohhh, pq não mandou isso pro Extraneus 2????

    Perfeito!

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  5. Excelente!

    Lembra os melhores episódios da ancestral série Galeria do Terror.

    Adorei!

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  6. uau, bem escrito, emocionante e cada detalhe bem desenhado em nossa mente.

    http://terza-rima.blogspot.com/

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  7. Suspense e terror na medida certa! Parabéns.

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