1 de nov. de 2010

Ampulheta - Por Flávio de Souza



A chuva gelada, que caía lá fora, não amenizava a temperatura elevada de seus pensamentos. Vivian olhava através do vidro da janela e pensava sobre uma fórmula mágica que pudesse livrá-la da situação difícil na qual se encontrava.

Sempre fora uma garota muito cética. Crendices e superstições nunca fizeram parte de seu estilo de vida, nem mesmo o horóscopo do jornal de domingo lhe atraía. No entanto, os acontecimentos dos últimos dias fizeram com que ela repensasse a respeito de suas próprias convicções.

Até um mês atrás,  Vivian seguia a rotina que marcava a sua vida, sem maiores problemas. No entanto, a incerteza selvagem, a qual assalta de súbito a todos aqueles que caminham pelas ruas das grandes cidades, resolvera apanhá-la em um desses momentos que julgava tão comum.



Uma tentativa de seqüestro relâmpago, ali, palpável, diante de seus olhos. Como acontece com todas as testemunhas nesse tipo de situação, a incapacidade de ação se espalhou completamente dentro dela e, antes que pudesse organizar qualquer movimento, seus ouvidos foram preenchidos pelo som de uma freada brusca, instantes mínimos, que ela julgou como uma eternidade. A cena se desenrolava como em câmera lenta, os policiais saltando da viatura, os gritos, os disparos, até o momento fatídico.

Ela poderia jurar ter visto o clarão no cano da arma do bandido. Poderia afirmar, com todas as letras, que uma sombra disforme havia cruzado o espaço entre eles. Poderia apostar todas as fichas que o projétil a escolhera.

Quando abriu os olhos, estava no quarto de um hospital. Seu peito queimava imensamente. Ela respirava com dificuldades, apesar de não estar atrelada a nenhum tipo de aparelho. Um médico, que passou para acompanhar o andamento do seu estado, lhe relatara que ainda não entendia como ela poderia ter escapado com vida, quase ilesa, de um episódio como aquele. Sorte. Muita sorte. Era o que dizia enquanto deixava o aposento.

Vivian pensava sobre as palavras do doutor quando sentiu um frio cortante tomar conta da sala. Estranhamente, percebia tudo com mais clareza ao seu redor. Seus olhos puderam distinguir os minúsculos cristais de gelo que revestiam a superfície metálica dos aparelhos.

Ela tremia de forma incessante. O vapor, que escapava de sua boca enquanto batia o queixo, nublava-lhe, agora, a visão. Então, subitamente, sentiu a presença de alguém, e uma voz perturbadora se fez ouvir.

- Como está, menina? – A voz arranhava-lhe os canais auditivos.

Uma sombra, no início disforme, começou a revelar os contornos de um homem. A tonalidade negra era absoluta e se destacava desde a cabeça adornada por um chapéu, até os pés calçados em sapatos finos. O estranho manteve o rosto oculto durante todo o tempo. Ele não levantou a cabeça para proferir as palavras que ainda ecoavam na mente da garota.

- Não precisa responder, pois vejo que você está bem.

A temperatura começava a se elevar rapidamente. Naquele momento, a menina exibia o corpo banhado em suor, sua pele expelia tanto líquido que chegava a encharcar os lençóis. O ar queimava-lhe as narinas enquanto ela tentava respirar. Seus olhos pareciam querer cozinhar diante da simples tentativa de encarar o homem.

O ser abaixou-se paralelamente à cama, encostou o rosto bem próximo ao da menina. Vivian não conseguia girar a cabeça, na verdade, todo o seu corpo parecia tomado por uma paralisia súbita. A voz, que à distância já soava desagradável, falada diretamente ao ouvido era insuportável. As palavras que lhe foram ditas naquele momento, ainda pesam em sua mente. Mesmo agora, um mês depois, ainda ostentam o mesmo terror.
A chuva começava a perder a intensidade. Ela torcia para que o mesmo não lhe acontecesse, pois precisava ser forte. Necessitava acumular toda a capacidade de concentração que fosse possível para não perder o foco do seu objetivo.

A campainha tocou. Ela não retribuiu o sorriso que encontrou quando abriu a porta, longe disso. Rômulo, o namorado que passara os últimos trinta dias dedicado exclusivamente ao acompanhamento da saúde da garota, recebera em troca um golpe certeiro no peito, foi ao chão. O rapaz tentava se arrastar pelo gramado úmido, estava desesperado e sem entender o que acontecia.

Vivian, com o rosto lavado pela mescla de lágrimas e chuva, a qual ainda teimava em cair, buscava ânimo para não fraquejar. De olhos fechados, pedia perdão e golpeava o rapaz caído. Sua mão tremia, mas não hesitou em produzir um sulco profundo na garganta indefesa que se oferecia ao seu alcance. Antes de perder a consciência para sempre, Rômulo tentou dizer-lhe algo, mas suas palavras saíram desconexas e inaudíveis.

Vivian chorava pelo ato hediondo que cometera, mas sentia ainda mais por saber que teria de completar a missão que lhe fora atribuída.

Com o coração do namorado nas mãos, no meio da tempestade que aumentara consideravelmente, gritava por aquele que destinara a ela tão árdua tarefa. Sofria sozinha, nas ruas vazias ninguém para compartilhar da sua dor.

- Vejo que completou sua missão – falava a voz sombria que surgira do nada.

- Sim, fiz o que você me ordenou. Agora me fale, por favor, me diga que você cumpriu a sua parte. Confirme que poderei viver minha vida sem achar que vou morrer a qualquer momento. Não quero ter os meus dias contados. Me diga que não estou marcada para morrer.

- Você precisa entender que o existir de cada um representa uma tarefa a cumprir. O lado oposto ao meu cultiva participantes para a sua causa e quanto a isso não me meto, ponto final.

Aquela que controla a ampulheta do tempo é invariável e inalterável, portanto, ainda que quisesse nada poderia fazer para modificar tais decisões, pois sua missão é escrever as linhas finais de cada ser vivente.

Quanto a mim, tenho como tarefa utilizar os atributos que disponho para atrair quorum para minha parte nessa ordem. E saiba você que seus últimos grãos de areia estão rolando nesse momento, e seu ato derradeiro a credenciou a participar do meu séqüito.

- Não! Você não pode fazer isso! Não!

O ser caminhava lentamente pelo asfalto, sua silhueta desaparecia gradativamente coberta pela água que descia do céu escuro. Vivian, perdida em seu desespero não percebeu a luz dos faróis às suas costas, nem o som característico dos freios trabalhando em um veículo sem direção. Talvez, como o do rapaz agora morto, o destino do caminhoneiro estivesse atrelado ao dela, talvez, mas isso Vivian não poderia saber, pelo menos não naquele momento. Seria possível perguntar em uma outra ocasião, se fossem para o mesmo lugar, obviamente.

Um comentário: