30 de nov. de 2009

O templo de Zarhaad - Henry Evaristo

       Descaminhos sombrios tem a honra de apresentar um conto singular de Henry Evaristo. O autor de Um salto na escuridão mergulha de forma original na obra de Lovecraft, mas o faz de forma criativa e única, mantendo o estilo que já lhe é característico. Arrisquem-se à angustiante experiência de conhecer o templo de Zarhaad.  


O TEMPLO DE ZARHAAD

Henry Evaristo

    Sempre me senti atraído pelo insólito. Quanto jovem despendia horas a fio absorto na tarefa de garimpar nas bibliotecas de meus familiares todos os livros que abordassem temas assombrosos e fantásticos.
  Tudo naquele universo me interessava profundamente e meus esforços para tocá-lo, de qualquer forma, tornaram-se cada vez mais veementes com o passar dos anos.
    A herança recebida de um tio tirou-me da miséria em que a morte de meus genitores me deixara e com trinta e cinco anos eu soube, pela primeira vez, o que era a liberdade financeira quase sem limites. Minha ânsia pelo inusitado que existe nas entrelinhas do mundo, podada durante os últimos anos pelas dificuldades financeiras e pelo trabalho que tinha para manter a casa apenas com meus ganhos com aulas particulares, cresceu desmesurada e diretamente proporcional à fortuna que, de repente, eu vira depositada em minha conta no banco. Eu, como único sobrinho do velho Santmartin, herdara-lhe a fortuna.
    No início limitei-me a importar tudo o que eu sempre sonhara em livros e artefatos relativos ao mundo da magia, do ocultismo, da demonologia e da bruxaria. Tudo o que podia encontrar eu imediatamente adquiria. Enchi a casa com volumes antigos e raros, e outros materiais com os quais um verdadeiro conhecedor do assunto poderia realizar qualquer tipo de ritual.
   Com o avançar dos dias tornei-me ainda mais recluso do que de costume e raras eram às vezes em que os outros me avistavam pálido a vagar pelas ruas da vizinhança. Até mesmo as visitas ao meu estabelecimento preferido, na avenida leste, ficaram restritas a no máximo um domingo por mês. Passei a entender que para manter-me puro como mandavam as lições dos tomos dos mestres eu deveria ser capaz de produzir, num ambiente adequado às especificações dos ensinamentos, todos os meus alimentos. Tornei-me ferrenho vegetariano e a higiene absoluta para mim passou a ser uma obsessão.         
    Chegava a tomar oito banhos por dia até mesmo nas temperaturas abaixo de zero de nosso inverno. Lia por seis e às vezes até oito horas ininterruptas. Nos intervalos, quando os olhos ardiam e ficavam vermelhos, corria ao laboratório que construí para tentar por em prática a teoria que aprendera. Depois comia plantas e ervas exóticas importadas do oriente e cultivadas, com todas as adaptações climáticas necessárias, em uma estufa que erigi no quintal. À noite o telhado da mansão era frequentemente visitado por minha figura esguia e mortiça, pois eu havia lido no APOCALIPSE DAS CRIATURAS, o terrível grimório do turco Zarhaad — o qual eu adotara como meu principal objeto de estudo — que a luz da lua era energética para o mago e que este poderia ler no brilho das estrelas o destino de todos os homens.
   Dois anos se passaram até que meus estudos me apontaram outro caminho. As leituras dos antigos livros e mapas, e peças raras trazidas de países distantes, me levaram à conclusão de que nada mais profundo eu poderia aprender e conquistar a partir do interior das paredes de minha própria casa. Era preciso aventurar, ir mais fundo na busca pelas informações; para penetrar nos confins absolutos do indizível, eu precisava viajar.
   Assim conheceu minha presença alta e magra a cidade de Istambul no verão de 1937. Lá deixei que toda a força dos ensinamentos do mestre tomasse conta e já não agia mais em respeito a meu corpo e minha mente. Acreditava que todos os meus passos eram guiados para algum desígnio oculto por uma força consciente que estava, para além da minha própria ânsia em seguir em frente, me orientando para um destino mágico. Em minha inocência humana, cria piamente que poderia desvendar e vislumbrar mistérios nunca antes conhecidos ou vistos por nenhum outro intelecto desta terra.
   Minhas buscas em velhas bibliotecas e sítios históricos levaram-me às ruínas do lugar habitado pelo mestre turco no século IX. Era, naquele tempo, um espaço afastado das zonas urbanas. Isolado por mais de trezentos quilômetros que avançavam para dentro de uma vasta região desértica. Quando me vi sozinho em meio às colunas do que no passado deveria ter sido um imenso templo goético (1), e enquanto ainda podia ver a silhueta recortada contra o poente do homem esquálido que me trouxera ali em seus camelos cansados, senti que finalmente estava diante de algo profundo e do qual já não podia me esquivar de qualquer forma. Era o espectro obscuro que eu tanto perseguira que se apresentava para mim por entre aquelas ruínas ancestrais.
    No entanto, a despeito de toda a exaltação e curiosidade, não foi sem uma pontada de relutância no coração que arrisquei os primeiros passos no interior do terreno acidentado. As imensas colunas rochosas amontoavam-se de uma forma inexplicavelmente incômoda para mim e os ângulos em que se haviam retorcido as gigantescas barras de aço que sustentavam um portão, como que meio viradas para o lado de fora, causavam-me um terror que ainda naquele momento era totalmente injustificado.
   Por muitas horas vaguei por entre os resquícios daquele sítio antiqüíssimo e deixei-me levar pelos ares de outras eras. Conforme avançava pelos restos de largos corredores e galerias gigantescas não podia deixar de imaginar o tipo de conhecimento que um dia fora produzido no interior daquelas paredes. Imagens de épocas passadas se formavam em minha mente a todo instante e eu quase podia testemunhar os milhares de homens e mulheres miseráveis que corriam à suas portas em busca de algum tipo de solução em suas vidas ou em fuga das lâminas intolerantes dos maometanos (2). De repente senti-me rodeado pela própria história da magia quando a natureza era um bem comum e controlável; quando a riqueza a partir do nada era um sonho possível e quando todo o mal podia ser feito ou desfeito com o auxílio dos gênios. De alguma forma maravilhosa a luminosidade solar que penetrava por entre as frestas nas rochas formava barras translúcidas dançantes em frente a meus olhos e, em relances breves, eu podia até mesmo vislumbrar pequenas formas divergentes do vento que se contorciam na luz.
   “Eu os vejo!” Gritei para o vazio das paredes destruídas. “Os demônios da poeira!”.
   E aquelas coisas estavam em toda parte. Dos recantos mais próximos e mais distantes, e até mesmo do fundo da terra escura, pareciam rir para mim, e me chamar. Era a jornada de minha vida; onde me seriam revelados os arcanos mais secretos. A cultura banida da terra a ferro e fogo pelo poder secular cristão; o conhecimento dos antigos que foi extirpado em toda a sua plenitude do inconsciente do mundo pelo império da razão e pelas amargas religiões dos homens.
   Largar-me inteiramente ao poder daqueles pequenos seres para que eles me conduzissem ao meu destino era o que eu queria mas, ao mesmo tempo, crescia ainda mais em mim um sentimento de alarme ante a tudo o que me cercava. Os espaços escuros por entre as ruínas titânicas passavam a representar perigo crescente em meu imaginário e não foi apenas uma vez, antes do fim, que achei ter visto um brilho anormal que me espreitava como os olhos de algum animal raivoso em meio às trevas.
    Depois, quando tornei a procurar os seres da luz, encontrei-os parados e amontoados a um canto bem iluminado. Não havia mais em seus rostinhos miúdos e afogueados o sorriso de outrora e muitos olhavam assustados para algum ponto acima de minha cabeça. Foi um movimento de pequenas pedras rolando que fez com que eu me voltasse para trás. Não vi mais nenhum sinal de movimento naquele interior e a escuridão, que antes se mantinha escondida e tímida, a tudo inundou com um ardor avassalador. 
    De repente me vi só, em pé, em frente a um pavor gigantesco e escuro que me fitava do alto de um paredão com muitos metros de altura. E a cada gesto seu, a claridade solar se curvava e minguava até desaparecer por completo.
    Não era um homem em absoluto. Antes era um resumo de homem; e do lugar onde deveria estar sua cabeça pendia para fora, projetando-se no ar, um imenso apêndice esverdeado cuja extremidade trazia um par de olhos amarelados que me fitavam horrivelmente graves. Seu tórax era forte, viril, como o de alguma potestade mitológica e abaixo da cintura, entre um par de pernas vigorosas que mais pareciam pilares de mármore escuro, balouçava a um estranho vento simum (3) um imenso falo, como uma grande cauda frontal, que se comportava como serpente ensandecida por um ódio tal que tentava, vez por outra, atacar as pernas da aparição que a continha com suas tremendas mãos musculosas. 
    Era ele, tenho certeza! Era Zarhaad, o mestre dos magos negros do oriente que me fitava do interior daquela forma medonha. Sei disso porque ouvi seus gemidos dentro de minha cabeça; ecoando como o grito nefasto que deve subir dos intestinos do inferno para aqueles que o procuram. E senti que suas mãos, aquelas mãos que antes tentavam conter a coisa gotejante que lutava por sua carne, agora se insinuavam dentro de mim, acariciando asquerosamente meus órgãos mais vitais, tentando sair e formando erupções em minha pele.
    Ali, naquele templo amaldiçoado perdi toda a minha convicção. No lugar onde o mal permaneceu aprisionado até aqueles dias eu falhei como mago. Cai de joelhos e pedi clemência e este meu ato provocou risadinhas histéricas por todo o recinto. Ainda pude ver os pequenos demônios da poeira rastejando de volta para seus buracos infectos agora com aparências bem diferentes daquelas com as quais me receberam. Como bandos de insetos imundos, se esconderam novamente em suas tocas decepcionados ao entenderem que não era eu, ainda, aquele que levaria o poder de seu mestre para o mundo exterior.
    Depois tudo se acalmou e apenas o uivar do vento quente do deserto fustigando as velhas ruínas chegou a meus ouvidos. Tudo estava como era antes e aquela quietude oprimiu meu coração de tal maneira que saí correndo do velho templo sem nem mesmo pensar na direção que tomaria.
   Foi um grupo de nômades que me encontrou vagando desorientado pelas areias, à noite, já quase a morrer de frio. É a eles que devo minha vida. A eles e a meu instinto humano de preservação. Mas receio que coisas muito mais sérias estiveram em jogo naquele dia no templo de Zarhaad e, se não fui seu novo discípulo no mundo dos homens para pregar e espalhar o evangelho negro sobre esta terra, o hediondo templo ainda está lá, solitário em meio à vastidão desértica, esperando por outro estudioso mais temerário que aceite ser tocado daquela forma pelas mãos asquerosas do mal absoluto.
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(1) - Goético: referente à Goécia, termo com o qual se desginava a magia negra na Grécia   antiga e durante a idade média.  
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(2) - Maometanos - Como eram conhecidos os seguidores de Maomé, os muçulmanos, nos  textos mais antigos sobre o Islamismo. 
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(3) - Vento simum - vento extremamente forte, mais comum no deserto do Saara, que  provoca enormes tempestades de areia. 
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N. do A.: Na incapacidade de admitir que não consigo elaborar algo mais original neste  momento de minha vida, digo que esta é mais uma humilde homenagem ao mestre do fantástico Howard Philips Lovecraft.
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4 comentários:

  1. Anônimo10:30

    Um conto apavorante.

    Gilberto

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  2. É mais um conto deveras perturbador do irmão Henry Evaristo. Parabéns, HE. Fraterno abraço!

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  3. Henry e sua escrita redondinha, cheia de nuanças descritivas dos sentimentos dos personagens frente as criaturas mais medonhas. Desta vez o mestre negro do deserto "incorporado" numa criatura visualmente incrivel pela palavras de nosso nobre escritor. Por pouco o discipulo não "tomado" por Zarhaad!

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  4. Henry é um mestre da escrita da Lit Fan, e como poucos consegue nos transportar para mundos sombrios e repletos de seres obscuros. Assim também ocorre em "O templo de Zarhaad".

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